10.16.2007

Kênia Ribeiro
Ofereço este livro a todas as Aninhas: Ágathe, Fernandinha, Isadora, Manu, Lalá, Juju, Luísa e Maria. E a todas as pessoas que carregam dentro de si um pouquinho de minha filha.
Agradecimentos:
Este livro é resultado de uma vida, não de uma morte. Agradeço à vida que me ensinou a amar de verdade, ser feliz de verdade, sofrer de verdade, a não ter medo de dizer a verdade e a entender que sempre há vida. Minha eterna gratidão àqueles que acreditaram em mim. A Karem, minha irmã, que, sem que eu soubesse, anotava em sua agenda as coisas que eu dizia, para mais tarde me exigir que eu escrevesse este livro. Muito especialmente quero agradecer ao querido Pe. Dalmo, que me ensinou a obedecer às ordens de meu coração, respeitou minhas convicções e ajudou-me a dar a meus escritos um formato de livro. Obrigada a todos que me incentivaram – Mamãe, D. Jacy, Bertha, Pat, Mônica, Ângela, Paulinha, Paulinho, Lu, Fred.... Aproveito esta oportunidade para agradecer a todos os meus amigos por serem meus amigos. Em particular àqueles que me autorizaram a transcrever suas mensagens: Príscila, Silvana e Tia Fátima. Por fim, de todo o meu coração, agradeço a Ucho, meu amado companheiro e o melhor pai que Aninha e Tavinho poderiam ter. “Gracias a la vida que hay me dado tanto”
Prefácio

Trinta e cinco anos, seis meses e vinte e um dias se passaram até o dia nove de abril do ano 2000. Esta foi a primeira fase da minha vida. Hoje, vivendo uma segunda etapa, sou uma mulher muito mais sensível às moções de minha alma e vivo entre a terra e o céu – que é onde minha filha está. Há nove anos casei-me com Ucho, com quem tive uma filha de nome Ana, que viveu entre nós por seis anos e nove meses. Ana foi planejada, esperada e desejada por nós e, ao chegar a este mundo, foi também muito festejada. Veio trazer luz, alegria e transformar nossas vidas, que nunca mais foram as mesmas, desde sua chegada, e, mesmo depois de sua partida, ainda nos continua transformando. Cativante e carinhosa, Ana, apesar da timidez, trazia consigo o dom da sociabilidade. Tinha muita facilidade de se relacionar e era extremamente querida por todos, o que lhe favorecia ser sempre muito requisitada. Nas festinhas de aniversário de seus coleguinhas, era a que jamais podia faltar na lista dos convidados. No dia nove de abril de 2000, uma de suas amiguinhas preferidas comemorava seu aniversário, e Ana não podia deixar de estar presente. A comemoração aconteceu num local bastante apropriado para uma festa de domingo. Fazia calor, mas a enorme área verde, as árvores frondosas e muita sombra produziam um ambiente bastante agradável; aparentemente sem perigo algum, muito menos para Ana, que era dócil e sem qualquer característica de criança levada. O fato de não ter piscina deixou-me tranqüila, apesar de Aninha saber nadar. O enorme e bem cuidado gramado serve de campo de futebol, mas não fazia parte da programação da festinha um jogo naquela tarde. Tanto é assim, que uma das traves do campo foi utilizada como base da decoração da festa, e a outra permanecia no lugar de costume. Ao chegar com minha filha à festa, percebi que tudo foi preparado com muito zelo e amor. Ana foi recebida, como sempre, com muito entusiasmo por suas amiguinhas. Combinamos que eu voltaria para buscá-la no final da tarde. Ao deixá-la, pediu-me que ficasse um pouquinho mais. Como era um hábito dela me fazer este pedido sempre que eu a levava nas festinhas de aniversário, na escola ou em outro lugar que eu não poderia ficar, disse-lhe, apenas, que não podia, pois seu irmãozinho me aguardava no carro para irmos almoçar. A partir de uma certa idade, normalmente cinco ou seis anos, nós, mães, costumamos oferecer a festinha apenas para as crianças, mesmo porque elas começam a achar que assim é muito mais legal. O último aniversário de Aninha já havia, a pedido dela, sido comemorado assim. Foi realmente o melhor que ela já teve - buscamos as crianças na escola com o trenzinho da alegria, trouxemos para nossa casa onde muitas brincadeiras, doces e refrigerantes os aguardavam. Nunca vi tanta euforia! Quando Aninha começou a ir sozinha às festinhas de aniversário, com o pedido: “mamãe, fica mais um pouquinho”, ela conseguia, às vezes, me fazer passar pelo “ridículo” de ser a única mãe a permanecer na festa. Naquele dia, esse pedido foi apenas mais uma tentativa, porque, na verdade, ela nunca desistiu. Assim – sem o saber – despedi-me de minha filha para sempre. Coloquei em seu bolso os números de telefone para contactar-me, caso ela resolvesse ir embora antes do combinado, e comuniquei à mãe da aniversariante, que veio nos receber e, muito gentilmente, também insistiu para que eu ficasse. Com a mesma justificativa que dei a Ana, agradeci o convite e segui para o sítio de minha sogra, onde almoçaria, com meu marido, meu filho e outros familiares, como era de costume aos finais de semana. Nesse domingo, em particular, era a primeira vez que almoçaríamos no sítio da vovó Jacy sem a presença de Aninha. E foi nesse dia, por volta de 16 horas, que aconteceu o acidente que culminaria na partida definitiva de minha filha. A trave de futebol que estava no lugar de costume e pesava aproximadamente 60 kilos caiu, acidentalmente, atingindo sua cabeça. O impacto provocou uma fratura na base do crânio, que a levou imediatamente ao estado de coma profundo. Tudo aconteceu muito rápido... Assim mesmo, como estou narrando. Cheguei à chácara para buscá-la como havíamos combinado, um pouco antes das 17 horas. À medida que avançava em direção ao local onde havia uma maior concentração de pessoas, procurava enxergar Aninha. Bem ao fundo vi um círculo formado por crianças sentadinhas no chão. Imaginando tratar-se de uma brincadeira, segui, ainda tentando enxergar minha filha, em direção a elas. Antes de chegar a meu destino, fui interceptada pelo pai da aniversariante que, totalmente transtornado, informou-me que o acidente havia ocorrido há poucos minutos e que eu me dirigisse imediatamente ao hospital. Acho incrível como, até aquele momento, eu não fui capaz de perceber o clima desolador que preenchia o ambiente. Mais tarde vim a saber que a rodinha de crianças rezava por minha filha. Estavam comigo, neste momento, meu marido, minha sogra, uma cunhada, meu filho e a babá. Desesperados, seguimos velozmente ao hospital, quando fomos notificados de que Aninha já estava sendo atendida, e que o quadro era realmente grave, muito mais do que imaginávamos. Meu cunhado – médico - já tinha sido chamado e chegou logo em seguida, mantendo-nos informados do andamento de seu estado. Foram aproximadamente duas horas de uma angústia jamais vivida por nós e um desespero incontido. Houve um momento que fomos, Ucho e eu, para a praça em frente ao hospital, buscando silenciar nossas mentes e acalmar nossos corações, para, numa tentativa de concentração, enviar para ela todo o nosso amor. Estávamos tão impotentes diante daquela situação, que não podíamos fazer nada mais além de acreditar na força de nosso amor por ela. Minha vontade de que aquilo não estivesse acontecendo era tão grande, que eu olhava para as árvores da praça e para mim eram todas de plástico; já na memória de Ucho, esse momento não foi registrado. É incrível como nossa cabeça encontra saídas surpreendentes quando não queremos enxergar a realidade com toda a clareza com que ela se apresenta. Por volta das 19 horas, Aninha abriu suas asas e voou para o infinito, assim como uma borboleta abandonando seu casulo, deixando-nos com a terrível sensação de que aquele pesadelo não ia ter fim.
Por uma boa causa
Para nós, pais que sofremos a perda de um filho, constitui um grande aprendizado partilharmos, mesmo que através de livros, nossa experiência . Consola-nos saber que outros vivem e suportam a mesma dor. Sequer nossa família é capaz de julgar a grandeza e a intensidade desse sentimento de perda. Os tios perderam a sobrinha, os avós perderam a neta, os primos perderam a priminha, só nós perdemos nossa filha e não há quem possa compreender isso, a não ser quem vive a mesma dor. Por essa razão e pela memória de minha filha é que enfrento, com lágrimas nos olhos, a árdua missão de reviver, enquanto escrevo, a dureza desses momentos que guardo escondidos em meu coração. Ana foi socorrida por um casal de médicos que participava da festinha. Creio que a Providência Divina cuidará, no momento certo, de colocar-me diante dessas pessoas às quais Ucho e eu somos eternamente gratos, para que possamos, quem sabe, falar serenamente sobre esses últimos momentos de minha filha. Estou convicta, apesar de minha ignorância com relação à medicina, que foi graças a esse pronto atendimento, que tivemos um tempo para respirar fundo, antes de receber a pior notícia de nossas vidas. Sempre que posso, procuro saber um detalhe a mais, sobre todo o acontecido; é muito importante sabermos exatamente como tudo aconteceu; faz parte de nosso processo de restauração, mas as coisas precisam acontecer a seu tempo e a sua hora, porque, se forçamos situações, corremos o risco de queimar importantes etapas, sem as quais não sairemos inteiros adiante. Demorei alguns meses para ter, em mãos, a certidão de óbito de Aninha, porque Ucho dizia que estava com Fred (meu cunhado, o que é médico). Fred dizia que estava com D. Jacy, que, por sua vez, dizia que não estava com ela. Até que um dia, não só por curiosidade, precisei de fato da certidão para retirar do quadro de dependentes de nosso plano de saúde o nome de nossa filha. Preferi, eu mesma, fazer isso porque, mesmo sendo Ucho o titular, imaginei, não sei por quê, que eu teria melhor condição emocional para tomar essa providência. Contando com a ajuda de uma amiga que trabalha no cartório, em minutos eu consegui uma segunda via do documento. Tranquei-me em meu quarto para abrir o envelope, não sabia qual seria minha reação, tinha certeza, apenas, de que precisava enfrentar aquele momento. Chorei muito, li e reli, várias vezes, mas algo muito forte me dizia: “Isto é só um papel, sua filha viverá para sempre!” “Choque hipovolêmico” foi a causa da morte de Aninha. A partir de então, passei a esperar ansiosamente o momento exato que alguém pudesse, da maneira que eu queria, como uma aula, me explicar do que se tratava. Foi Lu, esposa de Fred, minha amiga de todas as horas, que é médica e também mãe, como eu, que, com muita paciência e didática, me explicou-me que a pressão arterial é o resultado do volume de sangue que sai do coração e da resistência que ele encontra nos vasos periféricos. No caso de uma hemorragia, o volume sanguíneo diminui e a pressão cai bruscamente. Foi isso o que aconteceu com minha filha. O acidente causou-lhe uma hemorragia interna, o sangue que deveria circular em suas veias era derramado em outras partes do corpo e, mesmo com a reposição de sangue, não foi possível recuperar sua pressão, porque o ritmo da perda era muito maior. Ante meus inúmeros questionamentos, Lu me ajudou a superar muitas coisas, foi ela que me garantiu que minha filha não sofrera nada e que, se Aninha tivesse sobrevivido àquele trauma, seria, cientificamente falando, impossível ela voltar a ser uma criança normal. Confessou-me também, em meio a uma dessas nossas conversas que lhe cortava o coração, lembrar que, no hospital, desesperado, Ucho pediu-lhe: - Lu, pelo amor de Deus, salve a minha filha! - E ela não pôde dizer-lhe nada, porque, também, nada podia fazer. Vivi com tanta serenidade a angústia de perceber que minha filha poderia morrer a qualquer momento, que fui capaz de ajudar Fred a nos dizer que ela já havia morrido. Quando o vi entrar no apartamento – já estávamos instalados no hospital, porque, na melhor das hipóteses, ela iria para o CTI – trancar a porta e vir em nossa direção, pressenti que teria uma terrível notícia para nos dar. Ana estava com uma parada cardio-respiratória, e os médicos estavam tentando reanimá-la. Diante de um crucifixo na parede do quarto, caí de joelhos e supliquei com toda força de minha alma: - Meu Deus, salve a minha filha! Obviamente quando, de joelhos, implorei a Jesus crucificado que salvasse Aninha, não havia em minha atitude racionalidade alguma. O que eu desejava, com todas as forças de meu coração, era que minha filha não morresse; certamente o mesmo desejo de Ucho, ao fazer também esse pedido a Lu. Para que eu consiga prosseguir em minha missão, às vezes muito difícil, mas sempre gratificante, de viver, tenho que procurar ser generosa comigo mesma e aceitar que, em circunstâncias como essa, a razão está no coração. E ele me fez sentir que minha filha foi salva! Minutos depois toca o telefone, Fred atende e novamente vem em nossa direção. Transfigurado, põe sua mão sobre o ombro de Ucho, seu irmão e, com um nó na garganta, tenta dizer-nos algo. Já sabíamos, é claro, do que se tratava, mas, com uma esperança enorme no coração e com uma vontade muito grande de ouvir um sonoro “não”, perguntei-lhe: - Ela morreu? Ucho imediatamente tapou a minha boca e gritou: - Não pergunte isto! Com um movimento afirmativo da cabeça Fred, ainda sem conseguir falar, respondeu a minha pergunta. Desde o momento em que cheguei ao hospital, implorava aos médicos, aos enfermeiros, a quem aparecesse a minha frente, para que me deixassem falar com minha filha. Todos me diziam que não ia adiantar, pois ela estava em coma, e eu respondia: - Não tem problema, ela vai me ouvir, eu tenho certeza! - Até que me disseram que eu poderia estar com ela, assim que estivesse instalada no CTI, porque eles não tinham como interromper os procedimentos para que eu pudesse estar com ela. Havia uma equipe de médicos e enfermeiros a seu redor, e eu não poderia sequer me aproximar. Foi exatamente enquanto a instalavam no CTI que ela teve a parada cardio-respiratória. Finalmente, então pude ver, falar e cantar para minha filha. Amparada por Lu e Soninha (pediatra de meus filhos), saí do apartamento para ir ao encontro de minha filha, os corredores do hospital eram longos e frios. O cheiro forte de esparadrapo, passou a ser o perfume da minha dor. Quando chegamos à porta do CTI, pediram-nos para aguardar, porque estavam tirando os tubos que já haviam sido colocados nela. Não sabia onde nem como estava Ucho nessa hora, mas, antes que liberassem nossa entrada, ele chegou, e foi muito bom estarmos juntos nesse momento. Quando entramos, alguns médicos e enfermeiros estavam em pé na porta de uma sala, e o olhar deles nos dizia que gostariam muito de ter evitado aquela situação. Eles estavam realmente consternados. O leito em que Ana se encontrava era o último à direita, se não me falha a memória. Ela dormia um sono profundo, exatamente igual aos que costumava dormir quando chegava cansada de um dia muito divertido. Enquanto cantava sua canção de ninar *(Menininha), examinei todo o seu corpinho, que vestia somente sua calcinha amarela de bolinhas cor-de-rosa. Não tinha sequer um arranhão, nem mesmo na cabeça; seus pés estavam imundos de tanto brincar. Choramos e sofremos como nunca. Não sairia dali sem cobri-la com um lençol, porque seu corpinho já estava frio e eu não iria embora com a triste sensação de que minha filha sentia frio. Deixamos o CTI e seguimos, novamente, pelos intermináveis corredores do hospital, sem saber para onde ir ou o que fazer, totalmente conduzidos e amparados por nossos amigos e parentes que nos acompanhavam. Fomos para casa, tomamos um banho e nos vestimos para enfrentar a mais longa e tenebrosa noite de nossas vidas. Senti uma vontade enorme de vestir uma roupa branca; como sempre gostei de roupas escuras, pretas principalmente, vesti a única calça branca que tenho. Desde então, tenho usado muito roupas coloridas, sinto-me melhor, meu luto parece que foi antecipado, porque o preto já não predomina em meu guarda-roupa. Creio que foi a forma que encontrei de dizer ao mundo que já não era mais a mesma, que naquele dia nascia uma nova pessoa. *MENININHA (Toquinho e Vinícius) Menininha do meu coração eu só quero você a três palmos do chão, menininha não cresça mais não, fique pequenininha na minha canção, senhorinha levada, batendo palminha, fingindo assustada com o bicho papão, menininha que graça é você, uma coisinha assim começando a viver. Fique assim meu amor sem crescer, porque o mundo é ruim, é ruim e você,vai sofrer de repente uma desilusão, porque a vida é somente teu bicho papão. Fique assim, sempre assim, e se lembre de mim pelas coisas que eu dei, também não se esqueça de mim quando você souber enfim de tudo o que eu amei. Logo que chegamos a casa, Marcinha, irmã de Ucho, chegou para buscar uma roupinha para vestir Ana. Fiz questão, eu mesma, de escolher. Queria mandar-lhe um vestidinho de mangas para aquecer seu corpo e meias para aquecer seus pezinhos. Escolhi um azul celeste, com uma pala branca bordada de casinha de abelha. Ela gostava desse vestido e o havia usado pela última vez no batizado de Otávio. Por sugestão de Ucho, pedimos que a sala do velório fosse a menor que tivesse, e que todas as cadeiras fossem colocadas do lado de fora. Era a última noite que passaríamos com nossa filha, queríamos ficar bem pertinho dela sem sermos incomodados. Nossos amigos entenderam perfeitamente nossa vontade, tanto que alguns deles passaram toda a noite em pé e em absoluto silêncio a nosso lado, angustiados pela impotência de nada poder fazer para reverter aquela situação, mas como uma rocha na beira do abismo, oferecendo resistência para que você não caia. Chegamos ao velório junto com seu caixãozinho branco; avancei em direção a ele e, antes que o acomodassem no suporte, arranquei-lhe a tampa, mas a minha vontade era de arrancar minha filha lá de dentro. Controlei meu impulso, mas, no meio da noite, pedi a minha mãe que me ajudasse a tirá-la dali, porque eu sentia uma vontade imensa de pegá-la ao colo. Mamãe, com muita sabedoria e, imagino eu, com o coração partido por me ver sofrer tanto e não poder atender aquele meu pedido, disse-me: - Não vamos fazer isto, minha filha, será muito pior; guarde a lembrança de quando você a apanhava no colo e ela te abraçava, porque agora isto não vai acontecer e você vai sofrer muito mais. Aceitei seu conselho, porque, infelizmente, ela tinha toda razão. O sofrimento pela perda do neto somado à dor de nos ver sofrer tanto sem nada poder fazer, obviamente, causa a nossos pais um sentimento inexplicável e também quase impossível de suportar, ainda porque nós, pais, é que somos o centro das atenções da família e dos amigos, e eles, nossos pais, têm que agüentar firme, porque sentem o desejo de nos amparar. Ucho me contou há pouco tempo: “Quando recebemos a notícia, mamãe estava conosco no hospital. Ela me abraçou pedindo desculpa por não saber o que fazer, senti nas suas palavras que, se pertencesse a ela o poder de decidir quem vai e quem continua, ela teria morrido no lugar de Aninha, só para não me ver sofrer tanto”. Assim como o cheiro forte do esparadrapo passou a ser o perfume de minha dor, o cheiro de flores, especialmente crisântemo, passou a ser o perfume de minha saudade. Fiquei toda a noite com meu rosto deitado ao lado do rosto de Aninha, que estava envolto por crisântemos amarelos e brancos; minha vontade era deitar meu corpo inteiro ao lado do dela. Quando chegou a hora do enterro, pedimos a todos que nos deixassem, Ucho e eu, um minuto a sós com nossa filha; queríamos despedir-nos. Em meio a beijos e carícias, dissemos-lhe: - Você é nossa filhinha querida, estará sempre em nossos corações e em nossas vidas, vá em paz, meu amor; papai e mamãe te amam muito, jamais esqueceremos quanta felicidade você nos trouxe! - Fiz um sinal da cruz em sua testa, como fazia todas as noites e lhe disse: “Deus te abençoe, minha filha!” Havia exatos quatro meses que seu avô, pai de Ucho, morrera. O corpo de Aninha foi depositado no mesmo túmulo. Imagino que, por estar muito recente, acharam por bem não remover a laje que cobria o corpo de Dr. Mário, evitando, dessa forma, mais sofrimento para a família. Sendo assim, Ana foi colocada sobre essa laje, ao nível do chão, trazendo a mim a necessária ilusão de que ela não foi enterrada. Antes de fecharem a portinha do túmulo, que deve medir aproximadamente 50cm X 50cm, pus-me de quatro no chão para olhar, novamente, minha filha. Mamãe, mais uma vez, levantou-me, dizendo: - Não faça isto, minha filha, é sofrimento demais! - Acho que, se não fosse ela, eu teria entrado por essa portinha. A única vez que não acatei serenamente um conselho que me deram foi quando, ao chegar no cemitério, pedi que abrissem novamente seu caixãozinho e alguém, talvez minha mãe, disse: - Chega, não abra mais! - Lembro-me de que, com muita autoridade e com um tom ameaçador, falei alto: “Abra”! Prontamente me atenderam. Beijei, beijei, beijei, até quando me deixaram, o rosto de minha filha. A certeza de que você nunca mais poderá beijar seu filho é um punhal cravado em seu peito. Essa é a parte da história que relutei em escrever. Meus olhos estão tão embaçados pelas lágrimas, que mal consigo ler o que estou digitando. Meus ombros doem de tensão e minhas mãos estão geladas. Desnudei, sem nenhum pudor, minha alma. Ao escrever este capítulo, venci, seguramente, mais uma etapa. Foi um grande sacrifício, mas por uma boa causa. Foi também, e principalmente, um desafio vencido que me trouxe a certeza de que o pior dia de minha vida já passou. Quero oferecer este capítulo, com todo o meu amor, a Ucho. Ele acreditou que eu seria capaz de abrir minha ferida e suportar toda dor; incentivou-me a escrevê-lo, por nós e por todos os pais que enfrentam o mesmo sofrimento.
O sentido da cruz
É muito curioso como Deus vai preparando – sem que o saibamos – os acontecimentos de nossa vida. Naquele fatídico domingo, em meio a uma conversa com minha sogra D. Jacy e mais alguns amigos, um pouco antes do almoço, falávamos da realidade da cruz em nossas vidas. D. Jacy dizia que, segundo um velho ditado, todos nós temos uma cruz para carregar. Como eu nunca admiti esse pensamento, refutei dizendo que, se assim fosse, eu teria que encontrar a minha, pois tendo já 35 anos, até aquela data não sabia o que era sofrer. Algumas horas depois dessa conversa, debruçada sobre o corpo sem vida de minha filha, eu começava a questionar o sofrimento. Eu pensava comigo: - Será que, sem perceber, eu te pedi uma cruz, meu Deus? E o Senhor de pronto me atendeu? Ou será isso um castigo? Se assim for, o que fiz para merecê-lo? Num momento como esse, tudo o que fazemos e dizemos é impensado, porque nossos ouvidos precisam de uma explicação e, desesperadamente, nós mesmos tentamos fazer isso. Hoje, pensando com mais calma, sei que não é assim que se deve entender a cruz em nossa vida. Um Deus que agisse com tanta crueldade e espírito de vingança não seria o meu Deus e nem o Deus de Jesus Cristo. Na conversa que tive com minha sogra, naquele almoço, posicionei-me contrária ao sofrimento como objetivo de vida. E continuo crendo que não viemos ao mundo para sofrer. Se a cruz se nos apresenta como conseqüência natural da vida, é tão somente porque sem ela não existe possibilidade de viver plenamente a aventura humana. A cruz tem um sentido, sim! No momento do calvário, da dor, da paixão, nós nos descobrimos bem próximos de Cristo e, próximos d’Ele, estamos próximos da redenção. Por isso, se há um sentido para a cruz, este só pode ser redentor. A cruz, quando assumida com fé, torna-se suportável. Por isso, sinto que nada pesa hoje sobre os meus ombros. Sofro muito, mas sofro em paz. A paz que sinto é quase tão grande quanto a saudade, mas creio que chegará um dia em que a paz será maior. O que, de fato, torna a cruz pesada e insuportável de se carregar é não sabermos colher os frutos que ela traz consigo. Costumamos seguir nossos caminhos arrastando-a carregada de frutos que já poderiam ter sido colhidos e saboreados.
As lições da natureza
A natureza é perfeita demais e nos traz ensinamentos a todo momento. Nenhuma folha cai de uma árvore se não tiver uma razão, e é claro que não temos explicação para tudo. Afinal, não viemos a este mundo para explicar nada e sim para aprender. Recordo-me o quanto Ana desejava ter um irmãozinho. Ucho e eu planejamos tudo de acordo com nossa vontade e nossa razão. Julgamos que era chegada a hora e resolvemos ter outro bebê. Engravidei, e foi uma alegria muito grande para Ucho, Aninha e eu; afinal de contas, tudo, até então, estava acontecendo exatamente como planejávamos. Após oito semanas de gestação comecei a ter cólicas e, em seguida, sangramento. Certa madrugada, perdi uma quantidade anormal de sangue, então liguei para meu médico, e muito querido amigo, Hubert, e ele me pediu que fosse encontrá-lo no hospital. Assim que me examinou, percebendo que, de fato, eu já havia perdido o bebê, cuidadosamente, disse-me: - Kênia, vamos precisar fazer uma curetagem! - Pediu, então, a minha mãe para providenciar um vasilhame esterilizado, porque ele iria colher material para pesquisa genética. Nunca tinha ouvido falar sobre esse procedimento, mas também não perguntei nada. Fui, então, para o bloco cirúrgico, tomei uma anestesia geral e correu tudo bem. Durante o dia todo que passei no hospital pensei somente numa coisa: como explicar para Ana que o tão desejado irmãozinho não estava mais em minha barriga. Ela tinha um aniversário para ir e eu pedi a minha irmã que a levasse. Quando cheguei em casa, ela não estava e, enquanto a esperava, encontrei uma explicação muito boa e verdadeira para dar a ela. Disse-lhe: - Filhinha, mamãe foi ao hospital para Hubert (que ela chamava de Rubet) examinar nosso neném, e sabe o que ele descobriu? Que o neném não quis ficar em minha barriga; agora ele resolveu ir para o meu coração. Aninha imediatamente perguntou: - Mas depois ele vai voltar para a barriga, né, mamãe? Eu respondi: - Claro que vai, ele só estava com um pouquinho de preguiça de vir agora, tá bom? Minha explicação foi muito bem aceita por ela, graças a Deus. O material colhido para a pesquisa genética foi enviado para Belo Horizonte. Trata-se de um exame que pode trazer maior esclarecimento a muitas mães que perdem seus bebês no primeiro trimestre de gestação, pois 95% dos abortos espontâneos ocorridos nesse período da gestação são provocados por má formação do feto. Passados uns trinta dias do envio do material veio, finalmente, o resultado dos exames, revelando que eu tinha estado grávida de uma criança do sexo feminino com má formação e portadora da síndrome de Down. Se ela tivesse nascido, certamente seria amada como Ana. Nesse caso, minha única alegria estava em saber como é perfeita a natureza, e como a vida conspira a nosso favor. Mais tarde entendi que essa experiência tratava-se de uma preparação para o que eu viveria depois. Essa informação científica era, para mim, uma novidade tão grande que eu a fazia ser conhecida pelas pessoas com quem me relacionava, principalmente as que tinham perdido bebês nessas circunstâncias. Para dar continuidade às pesquisas genéticas, Ucho, Ana e eu fomos a Belo Horizonte. Após uma demorada consulta em que nossa filha também foi examinada, verificou-se que tudo estava bem. Eu poderia, após cinco meses (porque um já se havia passado), engravidar novamente. Contrariando as ordens médicas e nossos planos, quatro meses depois eu estava grávida e, no dia 20 de abril de 1999, para orgulho de sua irmãzinha, nasceu Otávio, um bebê lindo, saudável e perfeito, com 55cm e 3.700kg. Em seu “álbum do bebê”, tem uma página cujo espaço é dedicado à mensagem especial da mãe. Lá está escrito assim: “Deus não poderia ter-me dado melhor presente: dois filhos perfeitos, saudáveis e, ainda por cima, lindos...”
Entre o céu e a terra
Como disse no início deste texto, minha vida tomou outra direção. Sinto que tenho agora uma missão especial, pois fui escolhida para diminuir a distância entre o céu e a terra. Não só isso! Mas eu mesma vivo dividida entre o céu e a terra, na medida em que não sei se me é melhor partir para estar com Aninha para sempre ou se é melhor permanecer para estar ao lado de Ucho e do meu filhinho Otávio, que tanto amo. Vivo agora este conflito que me faz pensar sobre a beleza da eternidade em contraste com a fugacidade deste mundo. Mas ainda não sei como sair dele. Todavia, creio firmemente que a mesma força que me reergueu e me sustenta há de conduzir-me neste processo. O que me motivou a escrever este livro é tão somente meu compromisso com esta missão. Assim como ao longo destes primeiros meses de ausência de Aninha encontrei grande consolo na leitura de livros cujo conteúdo era a partilha de experiências como a minha, também resolvi dar minha contribuição para que outros possam encontrar ajuda e consolo a partir de minha dor. Sou apenas uma das milhares de mães que viveram a difícil experiência da “perda” de um filho. Minha dor não é maior nem menor que a de nenhuma delas, independente das circunstâncias, é apenas diferente. Assim como não há uma unidade capaz de medir a intensidade do amor de uma mãe, não há também como medir a intensidade da dor dessa separação. Sinto estar dividida entre o céu e a terra. Entendo que, de agora em diante, faz parte de minha missão repartir o que me foi dado por graça. Há quem possa pensar que nada me foi dado, que, por mais benefício que eu receba, o preço que estou pagando é muito alto. Eu mesma, talvez, pensasse assim, se estivesse fora do contexto em que me encontro. De fato, não é fácil admitir sequer em pensamento a morte de um filho. Pai e mãe não foram feitos para enterrar filhos, e não gosto da palavra “morte” porque esta nos remete a uma dor muito sofrida, dilacerante, corrosiva, muito, muito cruel. Mas eu não trocaria a honra e a felicidade de ser mãe de Ana pela covardia de não enfrentar com o coração despedaçado o sofrimento que assola minha alma.
Onde encontrar a fé
Em face da fervorosa fé católica e praticante de minha mãe e de minha irmã, muitos me dizem: “Ainda bem que você é uma pessoa de muita fé e oração”. Considerando os atributos que teoricamente identificam uma pessoa de fervorosa fé cristã, estou muito longe de ser essa pessoa. Não quero dar o falso testemunho de que encontrei Deus em cultos ou em celebrações. Eu O encontrei dentro de mim, em meio ao sofrimento, apesar de acreditar que esse não é o único caminho. Nunca entendi Deus como um sádico, um Ser que sinta prazer em nos ver sofrer, porque, se assim fosse, Ele não seria Deus e estaria, dessa forma, se contradizendo. Durante muito tempo, ou por toda minha vida, eu pensei que não tinha fé, justamente por causa de certos rótulos que me deixavam “fora” do perfil da pessoa que crê. No livro “A roda da vida”, de Elizabeth Kübler Ross, há um parágrafo em que ela diz o seguinte: “Parei para descansar sob a sombra de uma das árvores que margeavam um vinhedo. Aquela sim era a minha igreja. Os campos abertos. As árvores. Os pássaros. A luz do sol. Não tinha dúvidas sobre a santidade e respeito que a mãe natureza inspirava. Eterna e honesta em sua aparência. Bela e a mais benévola na maneira de tratar os outros. Ali estava realmente a mão de Deus”. A verdade é que nossa fé pode ser encontrada e manifestada de muitas maneiras. A oração é uma delas, a freqüência aos sacramentos também pode ser outra, mas, honestamente, não foi a minha. Sem a menor sombra de dúvida, uma das mais difíceis provas para a nossa fé é o enfrentamento da morte. Eu desejo, sinceramente, querido leitor, que não seja esse o seu caminho. Mas se, porventura, vier a ser, não tenha medo, abra seu coração, acredite em mim, a proximidade da morte ilumina a vida, porque ela tem o poder de apagar tudo aquilo que não é essencial. “Os olhos dos vivos, tocados pela morte, só enxergam aquilo que o amor tornou eterno”.(Rubem Alves)
O enfrentamento diário
Quando me dizem que sou uma pessoa forte e que tenho muita fé, pergunto-lhes: O que você faria em meu lugar? Você vê outro caminho a seguir? Eu bem sei o quanto é difícil encontrar uma saída. Mas o primeiro passo é acreditar que ela existe, depois é preciso entender que, para chegar à luz, é essencial percorrer a escuridão. Sei que a intenção das pessoas é muito boa, e que realmente me acham forte. Mas me reservo o direito de também ser fraca. Acredito que a dor é a cura para o sofrimento. Isso não tem nada a ver com masoquismo ou coisa parecida. O que quero dizer é que preciso sentir a minha tristeza, preciso deixá-la entrar quando bate a minha porta, pois só assim me livrarei dela. Nossa dor e nosso sofrimento, quando plenamente assumidos por nós, tornam-se o espaço vazio, onde Deus pode criar o novo. Não é nos afastando do sofrimento que nos ronda que alcançaremos a paz interior. Mas enfrentando-o face a face, com coragem e confiança. Tão precioso e amado como Aninha, tenho Otávio, meu filhinho de um ano e meio, que não precisa de minha tristeza e, sim, de minha coragem e da minha fé. Por isso é que diariamente enfrento a batalha de não me deixar abater pelas dificuldades da vida. Passar por uma provação como esta pode, equivocadamente, fazer-nos sentir no direito de ser fracos. É como se o sofrimento nos justificasse perante nossas fraquezas. “Já sofreu demais, agora merece ser poupada de novas batalhas”. Não é assim que quero enxergar as coisas. Minha filha não morreu para que eu descobrisse meu lado covarde. Este eu já conheço muito bem. Sua missão foi despertar meu lado valente. A força que encontrei dentro de meu peito é a força do amor. E para quem ama tudo é possível, até mesmo ressurgir das cinzas. Foi a um custo muito alto que cheguei a todas essas conclusões, por isso estou tão convicta. Essa é a minha opinião, ela não precisa prevalecer, mas é a minha verdade, assim como é verdadeiro o sentimento que me move a escrever e testemunhar minha experiência.
Uma chance para minha alma
A palavra ”oportunidade” sempre nos leva a pensar em algo positivo, portanto parece sarcástico, em momentos como este, o emprego dessa palavra, mas o que nitidamente começo a perceber é que estou sofrendo a oportunidade de renascer. Dizem que, em meio a todo sofrimento, sempre existe uma porta aberta para nosso crescimento pessoal, interior, espiritual. Creio que hoje entendo o que isso significa. Que outra oportunidade me faria sentir abraçada por todo o universo? Que outra oportunidade me faria descobrir minha capacidade de amar o que está invisível aos olhos? Como eu poderia perceber a enorme capacidade de amar que as pessoas têm? Que outra chance eu teria de receber o amor, a solidariedade e o carinho dos amigos e de tantas outras pessoas que nem conhecia, mas, ao tomar conhecimento do drama que eu vivia, sofreram comigo a minha dor? Como eu poderia entender Deus sem essa experiência tão grande de amor? Não gostaria que meus pensamentos fossem dirigidos somente às pessoas que se encontram na mesma situação que eu. Seria muito triste se todos precisassem viver uma experiência tão dura para entender que nossos projetos podem ou não se concretizarem. Não depende só de nós, há outras coisas que dependem só de nós e, muitas vezes, estamos desatentos a elas. É óbvio que o que eu mais queria neste momento era ter a minha filha viva, em carne e osso, e mandar para o espaço todas essas descobertas e chances de crescimento que estou tendo e ainda terei, ou melhor, eu trocaria tudo isso por mais um, apenas um forte e longo abraço de Aninha. Mas essa opção não me foi dada e, certamente, é porque minha escolha não seria a correta. Meu corpo quer desesperadamente o corpo de minha filha, mas a minha alma precisa de uma chance para ver uma realidade que vai além da matéria. Na verdade, o corpo serve apenas como canal de comunicação entre os vivos deste mundo, mas a comunhão de almas pode acontecer no plano espiritual, sem que a pessoa esteja fisicamente presente aqui. Venho tentando ser o mais sincera possível; estou convicta de que o essencial é o desejo da alma, como disse Fernando Pessoa: “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”.
Onde mora a felicidade
Sempre hesitei em crer na continuidade da vida após a morte, e que o melhor a fazermos seria buscar a felicidade aqui e agora. Hoje creio firmemente na continuação de nossa trajetória existencial para além da morte, e continuo defendendo a idéia de que, mesmo assim, devemos começar a construir nossa felicidade aqui e agora, para que possa ser plenamente completada no outro lado da história. Meu coração está cheio de certezas. O que de fato mudou foi o significado que agora dou à felicidade. Talvez eu não deva ou não tenha coragem de dizer que me sinto feliz, mas seguramente devo afirmar que já sei o que é felicidade. Posso encontrá-la no luar, mas isso não significa que preciso ir à lua para encontrá-la: ela está dentro de mim. Posso encontrá-la na beleza do pôr-do-sol, mesmo sabendo que depois virá a escuridão, o que vale dizer que a felicidade começa aqui e agora. Não importa o que vem depois. Posso encontrá-la nos pássaros, mas, se engaiolá-los, eu a perderei. Como diz Rubem Alves: “O mundo de fora é um mercado onde pássaros engaiolados são vendidos e comprados. As pessoas pensam que, se comprarem o pássaro certo, terão alegria. Mas pássaros engaiolados, por mais belos que sejam, não podem dar alegria. Na alma não há gaiolas”. Posso encontrar a felicidade no mar, cuja água é salgada, ou posso encontrá-la num abraço, mas nunca nos braços onde penduramos pulseiras e relógios. Não sei onde é, nem o que é o céu, mas tenho convicção de que ele existe e que não é aqui. Crer nisso é vital para mim, porque, se podemos pensar em algo que seja a mais plena e pura felicidade, esse algo só pode ser o céu. Quando voltei do cemitério, após o sepultamento de minha filha, depois de um breve descanso à base de calmantes e deitada em sua cama, em minha cabeça surgiu a imagem do céu que quando crianças imaginamos: um lindo, enorme e verde gramado, com árvores frondosas e floridas, um lago de águas bem cristalinas cheio de patinhos brancos, anjinhos por todos os lados e todas as pessoas vestidas com roupas leves e brancas, com coroas de flores do campo nas cabeças, cantando e dançando felizes, muito felizes. Ai de quem, naquela hora, me dissesse que aquele lugar não existia. Meu coração se fez novamente criança para suportar a dureza daquele momento. Na tentativa de explicar-me, pergunto: - Para onde são levadas crianças inocentes e felizes quando se desligam da terra? Para um túmulo escuro e frio? Claro que não! Elas são arrebatadas para onde sua inocência e felicidade possam ser eternas. Se não quisermos, não precisamos chamar esse lugar de céu, mas não podemos negar que ele existe; seria negar todas as maravilhas que nos dão a chance de ser felizes. Enquanto corpo, necessitamos situar geograficamente nossos sentimentos e estado de espírito. Para o meu corpo que deseja abraçar e beijar a minha filha eu preciso dizer que o céu é o lugar de nosso próximo e definitivo encontro.
O lugar de encontro mora no coração
Segundo a liturgia da Igreja Católica, não são celebradas missas de 7º dia por intenção de crianças que já se foram. Como sou uma católica sem muito fervor, não sei bem a explicação para isso, mas acho muito bom, porque, apesar de saber que a missa é a celebração da vitória da vida sobre a morte, e que, a rigor, deveria ter um caráter festivo carregado de esperança e confiança na ressurreição, o encontro das pessoas, nesta ocasião, muitas vezes se transforma num prolongamento da dor do velório. O enterro de Aninha foi antecipado em 2 horas, porque resolvemos que o sofrimento não poderia se alongar mais. Conseqüentemente, inúmeros amigos que chegaram para a hora anunciada, ficaram se lamentando por não ter podido nos acompanhar naquele calvário. Nossos familiares acharam por bem - Ucho e eu não tínhamos, nesse momento, condição de achar nada – que celebrar uma missa em ação de graças seria uma forma de oferecer a eles, e a muitos outros amigos, que só depois vieram a saber do ocorrido, a oportunidade de manifestarem sua tão valorosa solidariedade. Na véspera da missa eu já me sentia mais fortalecida e comecei a pensar na possibilidade de comparecer à celebração caso Ucho quisesse, mas ele não achou que deveríamos comparecer, justamente porque começávamos a nos reerguer. Nos primeiros dias eu me sentia muito mal quando não estávamos juntos, era como se Aninha se separasse de nós, já que somos as duas metades dela. Hoje sei que a força que nos mantém, Ucho e eu juntos, é a mesma que mantém nossa filha viva. Quando viajou para fazer o Caminho de Santiago, Ucho mesmo me escreveu: “É feliz saber que o lugar de encontro mora no coração”. Nesse dia, véspera da missa, comecei a minha terapia diante da tela do meu computador. Achei que, ao menos por escrito, deveríamos manifestar nossos sentimentos e agradece,r já que mais uma vez não estaríamos lá para receber os tão fortificantes abraços amigos. Para serem lidas na missa, escrevemos duas mensagens. A primeira, para nossa filha: Ana, Não podemos ir ao seu encontro, filhinha, simplesmente porque nunca nos separamos de você. “Você sempre viveu... jamais haverá de morrer. Voe livre e feliz além de aniversários e através do sempre.” Haveremos de estar juntos sempre que desejarmos, no nosso amor, que é a única comemoração que não pode jamais terminar. “Longe é um lugar que não existe”.
Mamãe e Papai. E a segunda, para nossos amigos:
Queridos Amigos, Não existe tempo nem espaço maior que o amor; Não há vazio, só saudade... Nos conforta, neste momento, a certeza do quanto Ana é amada. Como gostaríamos de abraçá-los, um a um, agora! Um abraço vale mais que todas as palavras... Mas ainda somos carne e é por isso que sofremos, porque já não podemos mais abraçar nossa filha. Nossos muitos e muito queridos amigos, estejam certos: “O lugar de encontro mora no coração”. É lá que vamos guardá-los, além de aniversários e através do sempre, junto com nosso anjinho de alegria. Deus lhes pague. Kênia e Ucho

Para que fomos chamados à vida
É muito difícil tornar suportável o insuportável, mas em certas circunstâncias não há escolha. Quando situações inesperadas e difíceis, como a morte de um filho, acontecem em nossas vidas, temos dois caminhos a seguir: ou fazemos delas uma dádiva, ou sucumbimos sob a dor e o sofrimento, tornando triste e sombrio todo o universo à nossa volta. Não é, certamente, para isso que fomos chamados à vida. Resta-nos, então, procurar entender com serenidade o propósito de tudo. Todavia, não devemos confundir propósito com causa. Isso pode ser fatal num momento tão delicado. A causa nos remete ao porquê dos acontecimentos. Nunca pergunte o porquê, pois mistério não tem explicação. Diante do mistério, aceitamos ou não. A pergunta é: Para quê? E portanto, estamos perguntando sobre o propósito do acontecimento e não mais pela causa.Temos que ficar atentos para não deixarmos escapar os frutos da dor. Uma pessoa adquire maior solidez quando sabe aproveitar as oportunidades de crescimento que a vida lhe oferece. As promessas de vida só se realizam para quem se dispõe a redimensionar a hierarquia dos valores em torno dos quais gira sua vida. Isso requer fome de crescimento e busca de maior plenitude humana. É preciso ter o coração desarmado, simples, animado por sentimento de coragem e mansidão, questionar e, ao mesmo tempo, ser compreensivo; não ser regra nem temor, ser alegria e esperança, não ser juiz e, sim, irmão. No livro “A Roda da Vida”, Elizabeth Kübler Ross define muito bela e simplesmente esta nossa opção perante a vida: “Cada pessoa escolhe se vai sair do torno triturada ou com um polimento brilhante”. As dificuldades, tribulações e pesadelos pelos quais passamos e que, muitas vezes, não compreendemos, são, na realidade, oportunidades de crescimento. Nada acontece por acaso! Precisamos estar com o coração aberto para não deixarmos a graça passar, porque a finalidade da vida é a busca do crescimento, e a lição maior que podemos aprender é o amor mútuo e incondicional. “Todos nós estamos aqui com um único objetivo: crescer em sabedoria e aprender a amar mais. Podemos conseguir isso por meio da perda ou do ganho, por ter ou não ter, por alcançar êxito ou falhar. Tudo o que precisamos fazer é comparecer às aulas com o coração aberto”. *Rachel Naomi Remen - do Livro “Histórias que curam”
Mistério não se explica
Como entender a morte? Essa minha vontade surgiu imediatamente após o sepultamento do corpo de minha filha. Esse é um momento profundamente doloroso, porque a presença física ainda é muito forte, e eu voltei para casa pensando que minha filha tinha ficado sozinha trancada e abafada naquele lugar triste, escuro e frio. Ao chegarmos em casa, abri a porta e ela não veio, como sempre, correndo para nos abraçar. Não dá para acreditar que existe uma saída, um raio de luz, na escuridão daquele momento. Tomamos um calmante, Ucho e eu, e fomos deitar no quarto de Ana. Era o final da manhã de uma segunda-feira. Pela janela ouvíamos o barulho do mundo lá fora, e eu não conseguia entender como a vida podia continuar assim, tão normal, as pessoas trabalhando, os carros passando, buzinando, gente conversando e até cantando, não era possível tudo ficar tão igual sem a minha filha. Choramos muito e conseguimos dormir por, no máximo, duas horas. Foi preciso procurar um especialista para receitar uma combinação mais potente de medicamentos, para que à noite conseguíssemos dormir. É impossível não recorrer a esses meios nesta hora. Que bom que eles existem! Porque ela se foi tão de repente? Eu não tinha resposta para isso, mas, numa velocidade espantosa, com muita paz no coração, comecei a aceitar o fato, e acredito que, como fruto dessa aceitação, fui agraciada com uma capacidade de discernimento que foi me ajudando a recolher meus caquinhos. Porque a sensação que eu tinha era que uma bomba havia explodido dentro de mim e me transformado num monte de cacos. Não pretendo fazer deste livro uma crônica sobre a morte. Para quem tem fé e amor no coração, a morte não existe. Já foi definitivamente derrotada. Na verdade eu não conheço a morte. Fisicamente, nós só a conheceremos no dia em que tivermos que passar por ela. O que experimentei até então foi a difícil e dolorosa separação de corpos. Algo a que ainda não me acostumei e, provavelmente, jamais me acostumarei. Creio que entre a nossa origem e nosso destino final, é-nos concedido um tempo de existência nesta terra. E, para que nossa existência se manifeste plenamente, recebemos um corpo através de nossos pais. Gerei minha filha para esta etapa da vida e, através dela, começo a enxergar o verdadeiro sentido da existência humana. Todavia, hoje reconheço que não somos meramente um corpo biológico, mas que, na verdade, nossa existência ultrapassa toda a realidade material. Por isso, posso dizer que minha filha continua viva, apesar da palavra “morte”, com toda a sua insignificância, soar com um peso enorme sobre minha dor. A função principal de nosso corpo é permitir nossa comunicação com os demais seres vivos desta terra. Enquanto ainda estamos nele, temos necessidade de contatos físicos e, por não ter ainda atravessado a fronteira do sempre, é-me difícil a ausência física de minha filha. Tudo isso que estou narrando neste livro representa, para mim, recentes descobertas. Na verdade, sinto-me como quem acaba de nascer, uma nova pessoa começando a engatinhar em direção à própria reconstrução, agora com bases bem mais sólidas.
A quem pertence a vida, afinal?
Por toda a vida tive sempre a idéia de que devemos rejeitar a morte. Isso porque somos educados para uma mentalidade unicamente material, essencialmente preocupada e alicerçada sobre a efemeridade e transitoriedade desta vida. Aprendemos a valorizar as coisas deste mundo e pensamos que tudo começa e acaba aqui. Pensamos que vamos viver para sempre neste mundo e que jamais nos separaremos daqueles que amamos. Acreditamos que essas coisas só acontecem com os outros e jamais com nós mesmos. Mas um dia, “os outros” somos nós. Para mudar essa mentalidade é preciso que haja uma inversão total de valores. O sentimento de perda ao qual este modo de pensar está diretamente ligado é um sentimento possessivo, egoísta e materialista. Nosso amor humano acaba, por isso mesmo, tornando-se assim: extremamente possessivo. Achamos que a vida de nossos filhos, de nossos entes queridos nos pertence. E quando eles partem, ficamos revoltados, porque julgamos que nos tiraram algo que era nosso. A pergunta que me coloco hoje é: “A quem pertence a vida, afinal?” Mais do que nunca, sei que a vida não é uma propriedade, mas, sim, um estado de espírito; sei que ela não está no corpo, está na alma, por isso lutar contra meu desejo possessivo de abraçar e beijar minha filha é mais um desafio que tenho que vencer daqui para frente. Dessa pergunta surge uma outra: Quem decide o momento da partida? Ana pesava 19,5 kg e media 1,23m. A que distância e em que posição ela e as demais crianças, que estavam no local se encontravam, para que uma trave de 60 kg de ferro e a 2m de altura desabasse, naquele dia, naquela hora, atingindo-lhe fatalmente a cabeça e deixando ilesas todas as demais crianças? Trata-se de um acaso? Ela não foi atingida nem nos braços, nem nas pernas; todas as crianças foram poupadas, os cálculos foram perfeitos. Aquela era a hora só dela. Acreditando em Papai Noel e coelhinho da páscoa, ela fechou seus olhinhos para não ver que o mundo não era tão puro e feliz como ela. Se é verdade o que dizem a respeito de que a vida é um presente e a morte é um castigo, eu pergunto: poderia alguém que não ame Ana tanto quanto eu, dizer-me o que ela fez para merecer tamanho castigo? Não! Não posso crer nisso. Ana se foi porque já tinha cumprido sua missão. Trouxe a alegria para nossas vidas e esta jamais nos será tirada.
O céu não pôde esperar
Quando vejo, a todo momento, a crueldade que está rondando o mundo em que vivemos, uma confusão de sentimentos invade meu coração. Não sei se fico feliz porque minha filha está livre de todo tormento e violência ou se me entristeço porque meu filho terá que enfrentar essa dura realidade. Não é fácil estar dividida entre o céu e a terra, porque às vezes, a angústia não é por aquele que se foi e sim por aquele que ficou. Ainda assim, continuo desejando que minha filha estivesse aqui em meu colo, abraçando-me e beijando-me, o que, às vezes me faz sentir-me mesquinha e egoísta. O céu precisava de mais um anjo e não podia esperar. Não sabemos o que o mundo poderia oferecer a Aninha a partir de então, afinal ele tem o poder de corromper as almas. Não quero com isso dizer que o mundo é de todo ruim, como um paliativo para minha dor. Em absoluto. Tenho outro filho e espero, como toda mãe, um mundo mais justo e feliz para ele, e a missão de cada um de nós, assim como foi e está sendo a de Ana é dar nossa contribuição para que o mundo se torne cada vez mais humano porque estamos aqui de passagem rumo à eternidade. Esse, sim, é o futuro com o qual temos que nos preocupar, pois a vida é sobre o presente e não sabemos quanto tempo ela durará. Como diz Paulo Coelho: “No presente é que está o segredo; se você prestar atenção no presente poderá melhorá-lo. E se você melhorar o presente, o que acontecerá depois também será melhor. Cada dia traz em si a eternidade”. Tenho enfrentado todos os minutos de meu dia, com a certeza de que é em cada um deles que está a preciosidade da vida. Cada momento nos traz a chance de sermos melhores e de contribuirmos para um mundo mais feliz. Estou convicta de que esse é o caminho para a plenitude, e só assim poderemos todos viver para sempre, assim como Ana que veio, trouxe sua contribuição, fez e está fazendo este mundo ser melhor. Minha filha viverá para sempre na eternidade do meu amor, do amor dos que me amam, do amor dos que amam os que me amam e assim sucessivamente, como uma grande corrente, onde cada um de nós é um elo muito forte e precioso. É assim que nos tornamos eternos.
Se eu fosse Deus
Um dia, apreciando a beleza de um pôr-do-sol, disse para Ucho: “Se eu fosse Deus, o mundo não teria tanta graça, pois a minha imaginação não seria capaz de criar coisas tão belas”. Nesse dia não sabíamos sequer que iríamos casar-nos, muito menos que teríamos uma filha que, ainda pequena e inocente, ensinar-nos-ia tanto sobre a vida: a verdadeira felicidade, o verdadeiro amor e, principalmente, que não somos deuses. Esta é a questão: há muito mais além de nós, além daqui e além da dor. É claro que sofro, todos nós sofremos, cada um o tanto que realmente suporta e não o que pensa suportar. Precisamos reconhecer nossa incapacidade diante do universo e saber que estamos aqui para crescer, não para lamentar e cultuar sofrimento. Uma amiga chamada Maria Eugênia Azevedo, que como eu, tem um filho no céu, escreveu em seu livro “A dor que não tem nome” a seguinte frase: “O mundo não precisa da minha dor e sim do meu exemplo de fé e coragem”. Gostei disso e tenho-me esforçado para fazer o mesmo. Aliás, ao ler o seu livro, em vários momentos tive a sensação de que fui eu que o havia escrito o que aconteceu também com “O significado da vida”, escrito, por um pai que sofre a perda de seu filho. Leituras que recomendo a todos os que buscam entender os percalços da vida.
A ordem dos fatos não altera a promessa
A inocência das crianças nos permite penetrar mais profundamente nos mistérios da vida do que toda a experiência e sagacidade dos adultos. Certa vez, ao tentar ensinar Ana sobre a maneira correta de se comportar em uma determinada situação, de que já não me recordo, disse-lhe: - Minha filha, quero que você saiba que, quando mamãe lhe fala assim, ela está querendo somente ajudá-la. Ponha uma coisa na sua cabecinha e não se esqueça nunca: ninguém que você conheça ou venha a conhecer nesta vida te ama e quer o seu bem mais do que eu; sou sua melhor amiga, comigo você pode contar sempre. Nunca se esqueça disso, tá bom? - Um pouco emburradinha Ana respondeu: - Tá. - Sem querer que nosso assunto ficasse mal resolvido, insisti ainda uma vez: - Você entendeu, filhinha? Ao que ela me respondeu: - Entendi, mamãe. Mas, e se você morrer? Essa foi uma daquelas perguntas de criança que deveríamos estar sempre prontos a responder à altura, mas que, pelo péssimo hábito de subestimá-las, nunca estamos. Ela devia ter, no máximo, cinco anos quando isso aconteceu. Como poderia eu imaginar ouvir do meu nenê – é assim que tratamos nossos filhos a vida inteira – uma pergunta tão embaraçosa? Engoli em seco, enquanto rapidamente pensava e, felizmente, de súbito me ocorreu a seguinte resposta: - Mesmo que isso aconteça, estarei sempre a seu lado. Agora me dê um beijo e um abraço bem apertado. Eu nunca poderia imaginar, muito menos Ana que, na verdade, o que aconteceria seria exatamente o inverso. Ela me fez aquela pergunta porque, certamente, imaginou a possibilidade de um dia me perder. Essa é a preparação que recebemos de nossos pais, apenas na ordem natural das coisas devemos aceitar a morte, em situação contrária nem pense, estaremos sofrendo à toa. “Sou sua melhor amiga”, “Estarei sempre a seu lado” são frases muito usadas entre mãe e filho, talvez por ser a verdade mais absoluta que exista nessa relação. Ouvi muito minha mãe me dizer isso e certamente, também, repetiria para Ana inúmeras vezes ao longo de sua vida. Mas dizer-lhe isso quando não havia sequer completado cinco anos foi uma atitude tão ousada quanto a pergunta que ela me fez. A preparação que nossos pais não são capazes de nos oferecer - porque também não receberam dos seus – a vida se encarrega de nos dar. É assim que entendo a precocidade desse diálogo em minha relação com Aninha. Juntando as pecinhas deste enorme quebra-cabeças, que é a vida, é que descubro a minha capacidade de suportar em paz meu sofrimento. Apesar de a ordem dos fatos ter-se invertido, tenho plena certeza de que aquilo que eu prometi para minha filha naquele dia está valendo mais do que nunca.
O bálsamo sobre a ferida
Amar e ser amado nos faz sentir vivos em qualquer situação. Naquele triste domingo de abril e nos dias que se sucederam a ele, uma profusão de amor e solidariedade invadiu minha vida de uma forma arrebatadora. Foi como se o mundo inteiro me amasse naquele momento de tanta dor, e assim eu comecei a me reerguer. As pessoas precisam descobrir como é grande a capacidade de amar que elas têm. Foram tantas as manifestações de carinho, que não sabíamos como retribuir tanto amor e solidariedade. Era tudo tão forte, que minha sensação era a de que eu podia tocar os sentimentos como se eles tivessem-se materializado. Aliás, neste campo em que estamos nos movendo, temos muito o que aprender. Antes de tudo, é preciso que todos saibam como é importante para nós, que perdemos nossos filhos, sentir um toque de sua atenção e seu carinho. Nunca é tarde para uma palavra, um telefonema, um cartão, uma mensagem, um abraço... Algo que nos faça crer que não estamos sozinhos. Que outros estão nos ajudando a suportar a dor e derramando sobre nossas feridas o bálsamo do amor e da amizade. Mesmo em meio a todo sofrimento, somos capazes de entender que é difícil essa manifestação, essa aproximação, porque, de fato – nestas horas - não há o que dizer ou fazer. Até hoje – e espero que sempre - recebo recados de pessoas conhecidas, ou às vezes que eu nem conheço, dizendo: “Fala prá Kênia que eu não tive coragem de procurá-la, mas que eu não me esqueço dela nas minhas orações”. Essas mensagens são como música para meu coração, um bálsamo sobre minha ferida. Aproveito este capítulo, onde trato do carinho e da solidariedade dos amigos, para transcrever algumas das inúmeras, lindas e confortadoras mensagens que recebemos: Kênia, Com o coração transtornado, uno-me a você neste momento de profunda dor. Penso que o que conta agora é não questionar ao Pai de Amor porque “levou” o seu grande amor! Na realidade não existe acaso, sua filha não te foi “levada” – a sua missão de ser mensageira de alegria é que foi cumprida. Penso também não existir unidade que meça a qualidade de vida ou intensidade com que se viveu. Neste sentido, não há como se apurar quem viveu mais do que o outro, pois, para tanto, são irrelevantes as noções de tempo com que acostumamos a lidar. Não há, pois, como se dizer se 6 é um número menor do que 60, muito menos se poderá afirmar que cinco meses valem menos que 40 anos. Não é o tempo que conta, mas o modo pelo qual se viveu. ...E tenho certeza, quando rezo por você e sua família, de que o Pai do Céu te ama como filha especial e lhe ajudará a recolher seus “cacos” para prosseguir seu caminho guiada, agora, pelo seu mais precioso anjo de alegria. A certeza de que ela está bem, acredito, vai apaziguar aos poucos seu coração. Estou em oração por vocês! Príscila 11/04/2000 A mensagem anterior e a seguinte foram escolhidas porque são de duas pessoas que raramente encontro, e que nem por telefone mantenho contato, mas que, como muitos outros, descobri: são amigos de verdade independente da proximidade física. Percebi que as pessoas pararam, pegaram um papel e uma caneta e, sofrendo conosco, sem saber o que fazer para aliviar nossa dor, escreveram-nos coisas maravilhosas e importantes, vindas do coração. Kênia e Ucho, Hoje a única coisa que importa é a paz de espírito, a certeza do imenso amor derramado e do dever cumprido de pais presentes e maravilhosos que foram para Aninha. Vocês não a perderam, apenas a devolveram ao Pai celestial. Apesar de imensamente dolorosa essa separação, ela faz parte dos desígnios de Deus, e a Ele caberá encontrar o caminho para atenuar tamanha dor. Em tão poucos anos de vida, todos somos unânimes ao afirmar a criança especial, delicada, iluminada e linda que foi e será sempre nas nossas lembranças, a Ana. Aceitem nossos votos de breve restabelecimento, Silvana Mameluque e família. 17/04/2000 Tia Fátima estava em dúvida se nos enviava ou não o e.mail transcrito a seguir. Felizmente ele chegou até nós, trazendo alegria a nossos corações. Nossa filha foi feliz, amada e deixou saudades temos absoluta certeza; mas ouvir isso é muito importante para nós, pais, que estamos lidando com esta ausência tão sofrida. Kênia e Ucho, Pensei mil palavras para dizer. Nenhuma diz nada. Deus os proteja. Aninha onde quer que esteja, estará para sempre em seus corações. Sei como é terrível transbordar-se de amor e não ter como manifestá-lo, transformá-lo em um ato de carinho. Aninha foi (e é) o melhor de vocês dois, vocês a fizeram, com toda sua beleza, alegria, ingenuidade, amor e esperança. E agora vocês terão que carregá-la para sempre no coração e mostrar para aqueles que não a conheceram tudo que foi (e é) Aninha. Sei que nada (muito menos palavras) pode confortá-los, mas, quero que saibam que vocês foram pais maravilhosos, estejam convictos de que o foram, Ana foi a personificação da beleza e amor de vocês dois. Onde quer que ela esteja – e sei que estará em todo "nascer do sol”, no vôo dos pássaros, nas estrelas mais brilhantes, nas doces e belas canções, no vai e vem do mar, no riso das crianças, nas cores e beleza das flores, lembrem-se sempre: ela incorporou o melhor de vocês dois. Que ambos possam agora, em sua memória, irradiar a Ana que está em vocês. Um grande abraço. Estou aqui se puder ajudar... Beijos, Fátima Tôrres Leio e releio estas e todas as mensagens que recebemos, sempre que começo a sentir a sensação de que vou desabar. Elas são uma das armas que tenho para mandar a tristeza embora. Tornamos-nos terrivelmente vulneráveis, não porque sofremos, mas porque nos distanciamos uns dos outros. As inúmeras mensagens de solidariedade que recebemos significam que temos muitos amigos, e que, se sofreram conosco e se importaram com a nossa dor, é porque, de alguma forma, eles nos amam. Em forma de solidariedade, caridade, saudade ou amizade, não importa, o amor é o único sentimento que aproxima as pessoas.
Ouvindo o próprio coração
Como é bom ter amigos, e eu nem sabia que os tinha... Um amigo muito especial, com quem eu conversava quase todos os dias, dizia-me: “Este momento é seu, sinta a sua dor, faça o que seu coração mandar”. Assim tenho feito e só tenho tido bons resultados. Outro dia minha intuição me mandou ir ao local do acidente onde, não por acaso, minha filha se desligou da terra. Pensei... Isto não vai dar certo, mas meu coração insistentemente me dizia: Vá agora! Fui... E, para minha própria surpresa, fiquei aliviada, imaginando como, ali, junto com suas amiguinhas, ela deve ter sido feliz em seus últimos momentos. Não senti revolta! A ida àquele local não aumentou meu sofrimento, ao contrário, fez-me acreditar que, para ela, aquele domingo feliz não acabou, Ana continua alegre, brincando, esperando-me ir buscá-la na festa de aniversário. E assim ela se sentirá até o dia em que nos reencontrarmos. Essa é uma certeza sem a qual não posso mais viver. É interessante como nos tornamos sensíveis à memória de nossos filhos que já se foram. E, quanto mais o tempo passa, mais queremos falar deles. Em conversa com as pessoas, insinuamos alguma coisa a seu respeito, exatamente propiciando aos outros a oportunidade de falarem sobre eles, porque ouvir as pessoas falando dos nossos filhos nos traz conforto e alegria ao coração, faz-nos senti-los ainda presentes entre nós. Mas o que acontece freqüentemente é o contrário: quando abrimos o caminho para que falem de nossos filhos ausentes, as pessoas desconversam ou mudam de assunto, deixando-nos assim com a triste dor de sentir que este já é um assunto que não cabe mais nas conversas. Nossos amados filhos começam a ser esquecidos pelo mundo. Restamos-lhes apenas nós, seus pais, e entes mais próximos, para conservá-los na memória. Se seu desejo é nos ajudar, mostre que não esqueceu nosso filho, deixe transparecer que ele é uma doce e agradável lembrança. Não tenha medo de abordar o assunto, porque, se chorarmos, será de emoção, não de tristeza e, se você também chorar, não peça desculpas. É confortante saber que outras pessoas sentem saudade.
O aniversário de Ana
Ao nascer, ou nove meses antes, Ana iniciou sua missão aqui na terra. Seis anos, nove meses e dezoito dias foi o tempo que tivemos para desfrutar, ainda nesta vida, da convivência de um anjo disfarçado de ser humano, como bem disse uma amiga. Pouco? Talvez sim, se compararmos com a eternidade e certamente não, pelo tanto que ela foi e nos fez felizes. Comparada à eternidade, a vida em nossos corpos é uma parcela insignificante de nossa existência. O dia de seu aniversário era o dia mais esperado por ela. Como ela aproveitou intensamente cada um deles, e como eu me dediquei à comemoração dessa data! Para celebrar seu aniversário, o primeiro depois de sua partida, pensei numa comemoração diferente. Resolvi, desta vez, fazer a festa de Ana em um Orfanato, onde vivem 36 meninas. Não podia vê-la feliz e radiante em sua festa cor-de-rosa, mas tenho certeza de que ela esteve presente, naquele dia e local, onde vivem aquelas crianças, que, pela primeira vez na vida, tiveram uma festa tão bonita e farta. O interessante é que sempre tive vontade de comemorar esta data assim. Pensava em esperar que ela crescesse para que pudesse entender melhor o significado de minha atitude. Estava mesmo pensando em fazer isso neste ano... Antes da festa, fiquei uma semana sem escrever nada, fazendo uma reserva psicológica para aquele dia. Meu coração mais uma vez insistia: Não desista, você precisa seguir em frente. No dia marcado, pela manhã, não abri mão de comparecer a um velório – o primeiro depois do de Ana - era da mãe de Graça, uma amiga que esteve conosco o tempo todo na madrugada mais triste e longa de nossa vida. O cheiro forte dos crisântemos levou embora toda a minha reserva psicológica, mas isso estava longe de ser um problema para mim. Fui cuidar dos muitos afazeres. O primeiro foi levar os refrigerantes para o freezer do Orfanato, quando começaram minhas recompensas. A felicidade e a euforia das crianças quando cheguei com os refrigerantes foram um presente para mim. Ganhei novo ânimo, e o dia transcorreu como programado. Uma hora antes do horário marcado para o início da festa, fui para casa. Enquanto tomava um banho, senti um medo muito grande de não suportar a emoção daquela noite. Tenho-me desafiado muito, e isso pode causar, a qualquer momento, um desabamento. Chorei bastante, queria chorar mais, mas não tinha tempo. Vesti-me, olhei para a foto de Ana e disse: - Vamos filhinha, está na hora de sua festa começar. - Nunca, nem mesmo quando ela estava fisicamente aqui entre nós, eu senti tão viva sua presença. As pessoas começaram a chegar bastante emocionadas, e eu percebi que dependia só de mim para aquela festa não se transformar em outro velório. Logo de início duas das coleguinhas de minha filha tiveram uma crise de choro e ninguém conseguia consolá-las. Uma amiga veio até mim e disse: - Kênia, acho que só você conseguirá confortá-las. - Respirei fundo e fui até elas. Então eu lhes disse: “Entendo porque vocês estão chorando. Eu também estou com muita saudade de Aninha, mas não podemos ficar chorando porque, como vocês, Ana também é uma criança muito amada, que tem família, casa, amigos, e festa de aniversário. Quem tem motivo para estar triste são essas meninas que moram aqui no orfanato e não têm nada disso e, mesmo assim, vejam como elas estão felizes”. Consegui... Senti que iria agüentar firme. Foi uma emoção atrás da outra e cada uma delas, ao contrário do que se possa imaginar, foi trazendo uma porção de alegria para o meu coração. Para que nada pudesse tirar a alegria daquelas crianças, combinamos que elas não precisariam saber o verdadeiro motivo daquela festa, e que escolheríamos as aniversariantes do mês para serem as donas da festa. Para nossa surpresa, entre 36 crianças, não havia sequer uma que fizesse aniversário no mês de junho. Decidi, então, que o aniversário seria de todas, mandamos fazer 36 mini-bolos, cada um com uma velinha. Ficaram lindos. A mesa ficou uma beleza, e o enorme salão repleto de balões cor-de-rosa. Fiz aquela festa com muito zelo e carinho, queria de verdade levar um pouco de alegria àquelas meninas. Foi, também, a minha maneira de não interromper bruscamente uma tradição de seis anos, seria seu sétimo aniversário, e eu ainda não estava preparada para suprimir essa comemoração de meu calendário festivo. Seria muito mais fácil enfrentar todas as emoções que aquela noite proporcionaria. Tenho que admitir que não fiz caridade alguma, ao contrário, aquelas crianças é que fizeram a mim, ajudaram-me a disfarçar um vazio que eu ainda não queria admitir. Sem me preocupar se seria capaz de agüentar mais uma forte emoção, resolvi acrescentar, na programação, um presente para Aninha. Afinal, a festa era para ela. Foi Fernandinha, uma coleguinha muito querida de Aninha, que, sem saber, me deu uma linda idéia. Quando certo dia passeava pela feirinha de artes e artesanato com sua mãe, ela pediu que lhe comprasse dois balões a gás. Meio sem saber por quê, sua mãe, comprou-lhe os balões, um cor-de-rosa, conforme a exigência dela. Ainda na feira, ao parar na banca dos docinhos, Fernanda pediu à vendedora que lhe emprestasse a caneta, e no balão rosa escreveu: De: Fernanda Para: Aninha. “Eu te amo, Aninha estou com saudade!” E soltou o balão. Essa história me comoveu tanto, que me emociono sempre que me lembro da pureza deste gesto de amor. As crianças nos ensinam coisas maravilhosas. É claro que copiei essa idéia. Comprei 150 balões a gás, cor-de-rosa, e pedi, não só às crianças, mas a todos que estavam na festa que o soltassem em oferta a seu anjinho da guarda. Ofereci pincéis atômicos para quem quisesse escrever um recadinho para seu anjo. No meu balão eu escrevi: “Feliz Aniversário, filhinha!” Escolhi, no céu, a estrelinha mais brilhante para ser a minha filha e, enquanto as crianças acenavam, os balões subiam lentamente em direção a ela, até desaparecer a nossos olhos. Nesse momento, lembrei –me de outra música que costumava cantar para Aninha: “Vejo a noite uma estrelinha no céu piscando, piscando. Mamãe diz que ela de longe pisca, pisca é me chamando. Quando eu crescer, quando eu crescer e o papai me comprar um avião, vou te buscar, vou te buscar, minha estrelinha na palma da mão ““. O bolo principal da mesa, presente de minha irmã, Karen, foi uma surpresa para mim. Estava lindamente decorado e, no centro, uma foto de Ana impressa em papel hóstia, portanto comestível, mais uma novidade e uma emoção para mim. As crianças do orfanato logo queriam saber de quem era a foto no centro do bolo. Como havíamos decidido não contar-lhes a verdade, inventei que era uma menina qualquer tirada de uma revista para representar a foto de todas elas, mas alguém desavisado acabou contando-lhes. A notícia logo se espalhou e elas começaram a querer só falar no assunto. Uma delas me perguntou: - É ruim morrer né, tia? - E eu respondi: - Não sei, nunca morri. – E, com uma pitada de bom humor, fui conseguindo fazer com que elas percebessem que eu estava alegre, o que não permitiu que elas se sentissem tristes. Elas, órfãs de mãe e eu, “órfã” de filha, tornamo-nos íntimas. - Tia, você mora com sua mãe? - Perguntou-me uma delas. Para aumentar nossa cumplicidade, respondi apenas: - Não. Sem se contentar com minha resposta, ela perguntou-me: - Por quê? – Porque casei-me e moro com meu marido - respondi. - E ela surpresa: - Mas você é casada até hoje, tia? Tudo o que para nós parece ser muito normal, para elas são verdadeiros milagres. No final da festa, por iniciativa das próprias meninas, reunimo-nos para uma oração de agradecimento. Para minha surpresa, espontaneamente, pediram pelas crianças que não podiam ter tudo o que elas tinham. Fiquei pensando que, se elas se consideram privilegiadas, como poderia me sentir prejudicada? Eu, que tive uma infância feliz, com amor, pai, mãe, casa, comida, escola, saúde e, o que é melhor, pude e posso oferecer tudo isso a meus filhos!
A saudade, uma nova companheira
Desde os primeiros dias após a partida de Ana, não tenho entendido como está sendo possível suportar tamanha dor. Penso todos os dias que amanhã vou desabar, e assim tenho vivido um dia de cada vez. Fico imaginando que as pessoas podem estar pensando que eu estou estranha, fora do meu estado normal. E com razão, porque eu mesma já perguntei a meu marido se ele estava achando normais as minhas atitudes. Isso porque, em nossa cabeça, o normal certamente seria eu me trancar em um quarto escuro, afogar-me na depressão e passar o resto dos meus dias me lamentando e chorando. Choro todos os dias de saudade de minha filha, e quanto mais o tempo passa, mais saudades eu sinto. Houve um período em que quase não suportei tanta saudade; tomei antidepressivos e, às vezes, ainda preciso recorrer a remédios para dormir. Afinal, para isso é que eles existem! Eu e Aninha sempre tivemos uma ligação muito forte. Não estou falando de amor, porque toda mãe tem um sentimento forte e incomparável por seus filhos ou, então, não são mães. Éramos muito agarradas uma à outra, talvez mais que o normal. Eu viajei menos do que podia, porque não gostava de me separar dela, mas só agora isso se tornou tão evidente para mim. Parece que sabíamos que nosso tempo era curto, e que, por isso mesmo, tínhamos que preencher cada minuto de nossas vidas com sessenta segundos de valiosa existência. Todas as noites, depois de Ana adormecer, eu conversava com ela, e dizia-lhe o quanto a amava e o quanto ela era importante para mim, e que eu jamais a deixaria. Parece até que eu já praticava o monólogo que hoje sou obrigada a fazer todas as noites para que eu consiga dormir. Nunca pensei que fosse possível estar com ela sem vê-la e sem tocá-la. A separação me levou a perceber o quanto estamos juntas. Jurei jamais abandoná-la, e isso me move a levar adiante o propósito de mostrar ao mundo que minha filha não esteve aqui na terra em vão. Escrever este livro é parte deste compromisso, que, se não for levado a cabo, fará sentir-me como traidora da promessa que fiz à minha filha. Ela confiou a mim a responsabilidade de mostrar ao mundo a que veio e a que foi.
A dor tem de doer
Quando em nossas vidas algo, por menor que seja, não acontece como planejamos, logo ficamos irritados e procuramos um culpado pelo insucesso de nossos planos. Perder um filho, obviamente, não faz parte dos planos de ninguém, por isso nós os educamos para a vida, para viver neste mundo. Para tanto, é necessário privá-los de certas ou muitas coisas, puni-los quando for preciso e, inevitavelmente, às vezes somos rudes. Ao nos depararmos com uma situação de perda, começamos um autoflagelo. “Ah! Meu Deus, se eu soubesse que ia acontecer esta tragédia, eu não teria feito isto, não teria feito aquilo; eu o teria abraçado e beijado mais vezes”. Ora, mas que bobagem! Mais uma das que dizemos ou pensamos. Claro que você não podia saber, pois, se soubesse, seu filho não teria sido uma pessoa normal e, certamente, não teria sido feliz. Não há, portanto, nada que pensemos ou falemos que explique ou amenize, a nossa dor. A dor tem que doer, e quanto mais “porquês” e “ses” buscamos, mais ela dói. Criar barreiras para nos protegermos do sofrimento pode ser a maneira como nos distanciamos da vida. Sentir a tristeza cura-nos, para que sejamos capazes de viver. Permite-nos seguir em frente depois da perda. Ignorar a dor não significa ser feliz. Ou somos sensíveis ou insensíveis; afinal, a parte de nós que sente o sofrimento é a mesma que sente a felicidade. Fundamental é saber mandar a tristeza embora o mais rápido que puder e manter a felicidade o maior tempo que conseguir, mas não esqueçamos que a porta do coração não tem chave nem por dentro, nem por fora. O sofrimento não pode, definitivamente, ser um modo de vida, tampouco deve ser desejado. Mas, quando chegar, deve encontrar a porta aberta; se veio é porque faz parte. Impedir que entre não significa ficar livre dele.

A senha para o reencontro

Tenho em mim algo que me conforta, enquanto sofro a minha dor. No último dia que esteve aqui entre nós, Aninha, pela manhã, ao acordar, me disse: - Mamãe, se eu não fosse irmã de Tavinho (Otávio, seu irmãozinho), ele seria meu irmão assim mesmo. Tentando imaginar que saída ela encontraria para que a hipótese de Otávio não ser seu irmão - o que para ela seria inadmissível pelo tanto que o amava e se encantava com ele - deixasse definitivamente de existir, perguntei-lhe: - Por quê, filhinha? Ao que ela respondeu-me: - Uai, mamãe, por causa de Deus! - Fiquei extasiada e encantada com o que minha filha me disse. Senti uma alegria enorme por saber que tão pequena já tinha uma idéia tão clara sobre o que realmente importa nesta vida. Que lição maravilhosa ela me deu no dia de sua partida. Em outras palavras, ela foi embora dizendo: - Não se esqueça, mamãe, de que somos todos irmãos! Algumas horas antes de nossa despedida definitiva, Ana me deu a senha para ir a seu encontro.
O aniversário de Tavinho
Ana tinha o hábito de fazer cartazes e desenhos e colar pela casa nas datas festivas. Onze dias após sua partida, Otávio fez um aninho. Encontramos em seu guarda-roupa uma pasta com cinco desenhos deixados por ela para seu irmãozinho. Um deles pré-datado para 20/04/2000. Ela, mesmo sem o saber, preparou-se para sua viagem definitiva. Até mesmo seu passaporte venceu no dia oito de abril, um dia antes de sua partida. Nessa viagem ele não seria necessário. No condomínio onde moramos, moram também muitas crianças, algumas delas primas de meus filhos. O convívio entre elas é muito harmonioso, e somos praticamente uma grande família. O sentimento de tristeza que invadiu, naqueles dias, as nossas vidas, obviamente envolveu a todos, principalmente as crianças que, confusas, tentavam entender o que havia acontecido. Onde estava Aninha, para onde ela tinha ido; será que ela estava feliz? Então, por que chorávamos? Meu filho de apenas um aninho sentiu bastante todo aquele clima. Foi difícil para ele ver sua casa, ao mesmo tempo que movimentada, muito triste. Seu pai e sua mãe sem sorrir, sem brincar, sem sair e sem chegar, sem chamar por Nana, sua irmãzinha que não aparecia para brincar e dançar com ele. Nove dias após a partida de Aninha, decidimos, Ucho e eu, que comemoraríamos o aniversário de Tavinho exatamente como havíamos planejado, apenas um bolo e umas lembrancinhas para as crianças do prédio. Assim, traríamos um pouco de alegria para dentro de casa, e as crianças não ficariam com a impressão de que nossa casa e nossa família eram tristes, o que poderia afastá-los de nosso convívio e, conseqüentemente, do nosso filho. Mesmo com as escapadas que Ucho e eu dávamos para ir ao quarto ou ao banheiro chorar, tudo transcorria normalmente. Nossos vizinhos todos compareceram com seus filhos, que se divertiram, cantaram parabéns e proporcionaram lindas fotos para o álbum de Otávio. Os cartazes feitos por Ana foram colados nas paredes entre os balões. Hoje, ao olhar as fotos, pergunto-me onde encontrei coragem para organizar aquela festinha. Foi uma vitória para nós e, tenho certeza, uma grande alegria para Aninha.
Planos para o futuro
Cada dia de minha vida tornou-se muito importante de ser vivido. O que antes não passava de “apenas mais um dia”, hoje são vinte e quatro longas e, portanto, valiosas horas. Tornou-se muito fácil entender aquela famosa e sábia frase de John Lennon: “Vida é o que acontece enquanto você faz planos para o futuro”. Se alguém me pergunta quais os meus planos para o futuro, eu respondo: - Se eu viver amanhã, meu projeto é tentar ser melhor do que fui hoje, porque a eternidade de cada dia nos dá esta chance. Quanta vida aconteceu enquanto eu planejei o futuro de minha filha! Não me arrependo de ter sonhado um futuro maravilhoso para ela, porque meu sonho não atrapalhou a intensidade de sua vida; ela viveu cada dia como se fosse o último e me ensinou a fazer isso sem sofrer com a possibilidade de o amanhã não existir. Em outubro de 1999, retornando da peregrinação pelo Caminho de Santiago de Compostela, Ucho relatou-me: “Ao chegar à Catedral de Santiago para assistir à missa dos peregrinos, ponto final de todos os que fazem o caminho a pé, fui tomado por uma emoção enorme que me fez chorar demorada e convulsivamente. Depois de percorrer, durante trinta dias, aproximadamente oitocentos quilômetros a pé, repensando minha vida, descobri que ela é perfeita; tenho uma família maravilhosa, uma mulher que amo, filhos saudáveis, trabalho digno, saúde e amor. Não tinha o que pedir a São Tiago. A tradição diz que, na chegada, podemos pedir o que quiser. Mas somente agradeci, agradeci muito, ajoelhado e chorando durante horas. Lá descobri que temos que percorrer a vida com uma mochila nas costas, ou seja, nesta existência só nos é necessário aquilo que podemos carregar conosco, se pesa, ou não cabe, é porque não é imprescindível. Na viagem adotei a música “Gracias a la vida que hay me dado tanto” como o meu hino para o resto da vida “. Hoje entendo muito melhor o que então Ucho me disse e acredito que ele também.
O dia das mães
No segundo domingo do mês de maio, acordei pensando: este é mais um dia para eu viver bravamente - porque meu único filho aqui na terra não tinha a menor noção do que aquela data significava. Era dia das mães, e foi muito difícil levantar-me da cama sem os beijos, os abraços e os desenhos coloridos de Ana. Uma vez em pé, fui para casa de minha mãe com a intenção de mostrar-me forte, sabendo que isso seria para ela o maior presente. Imaginando que a emoção não me deixaria dizer-lhe o que precisava, escrevi-lhe um cartão: Mamãe: A força que me sustenta vem do alto; é superior a toda e qualquer tentativa de explicar Deus. É infinita...porque Ele sabe que sem ela eu não posso mais viver. Ele tomou posse definitiva de mim e de minha vida. Buscá-lo não é mais a questão. Quero agora descobrir a melhor forma de celebrar este encontro. A paz que eu sinto é quase do tamanho da dor e da saudade. Penso que chegará um momento em que ela será maior, porque o Deus que mora em mim é amor, e nada é pequeno onde o amor é grande. Você é minha mãe querida, companheira de todas as horas, por isso, quero que se sinta feliz com tudo o que lhe digo, porque esta é a intenção de meu coração. Estou com muita saudade de Aninha, especialmente hoje, porque sei que ela faria muitos desenhos coloridos para mim, me encheria de beijos, abraços e muito carinho. Mas estou em paz, porque pude encontrar Deus, onde Ele realmente está. É a este Deus que eu te entrego hoje, mamãe, assim como entreguei a minha filhinha querida, com a certeza de que o amor tudo pode... Feliz Dia das Mães, Kênia. Não foi nem de longe um dia das mães alegre, mas foi mais um dia de paz em nossas vidas.
Cada um tem a sua história
Cada um de nós vivencia o mesmo acontecimento de maneiras muito diferentes. Não pretendo transformar o que penso em regra, mesmo porque o que penso é o que sinto, e sentimento não tem regra. Quantas pessoas que perderam mãe, pai ou irmão na tentativa de consolar-me, disseram-me:- Eu sei o que você está passando, eu também já passei por isso. Ao ouvir essas palavras, eu me sentia magoada, como se a dor mais forte naquele momento fosse um trunfo. Milhares de mães, eu sei, perderam seus filhos em circunstâncias muito semelhantes ou até mesmo iguais à em que eu perdi minha filha, e, por mais que seja parecida a dor que nós vivemos, nosso sentimento e, conseqüentemente, nossa reação jamais serão os mesmos. Nós vemos e vivemos nossa experiência de maneira única. A história que contamos, embora tenha muitos detalhes que se assemelham, é extremamente pessoal. É difícil narrar assim, por escrito, a minha história, pelo simples fato de esbarrar na limitação da linguagem e ter que ficar esmolando sentido para as palavras. Não sei como me fazer entender. De qualquer forma, cada um vive sua própria dor, sua própria experiência e, por melhor e mais precisamente que as narremos, o leitor ou ouvinte terá apenas uma parca noção do que estamos experimentando.
Saudade, sinal de amor
Passado o dia das mães, veio o aniversário de Aninha, 22 de junho, também bravamente vivido e comemorado como contei anteriormente. Meu próximo grande enfrentamento foi o dia dos pais, depois o nosso aniversário no dia 19 de setembro - Ucho e eu fazemos aniversário no mesmo dia. Ana adorava datas, porque eram oportunidades para fazer seus cartõezinhos, trabalhinhos, bilhetinhos e todas as surpresinhas possíveis para nos agradar, e como agradava! Sobrevivi heroicamente a todas essas emoções. Parece pretensioso dizer heroicamente, bravamente etc., mas não há outra alternativa, às vezes meus amigos me dizem: “Nossa, como você é forte, Kênia!” Isso não é força nem heroísmo, é simplesmente uma opção de vida. Tenho um filho – meu pedaço de terra – tão precioso quanto Ana – meu pedaço de céu - um marido que amo e que precisa de mim tanto quanto eu dele, uma família que me faz sentir viva e amada, e por essas maravilhosas razões, decidi enfrentar todas as tempestades. Estava começando a acreditar que a minha reação forte e destemida diante da situação de sofrimento que vinha vivendo ao longo dos oito meses de ausência de Aninha não era uma coisa passageira e, sim, uma resposta definitiva da Kênia que eu não conhecia. Com a proximidade do Natal, comecei a sentir um certo medo, fiquei um pouco decepcionada comigo mesma. Por causa da certeza que sempre tive de que jamais seria capaz de suportar a morte de um filho, essa possibilidade do vaso novo se quebrar é uma ameaça constante a meu equilíbrio emocional. Nesses dias que antecedem o Natal, tínhamos, Ucho e eu, o hábito de sair à noite com Ana para vermos as “luzinhas de Natal”, como ela gostava de dizer. Era uma brincadeira muito gostosa, porque cada dia que saíamos havia mais uma praça, um prédio, uma árvore ou uma casa a mais iluminada. Por causa disso, resolvi decorar com ”luzinhas de Natal” a árvore que faz sombra sobre seu túmulo no cemitério. Essa é mais uma das minhas reações que nem eu mesma entendo, mas não faz mal, o fato é que me sinto bem fazendo isso e outras coisas mais, mesmo sabendo que minha filha não está naquele lugar. Imaginando que o Natal seria, de todas essas datas, a mais difícil de enfrentar, pensava só em me acovardar, tomar um remédio para dormir e acordar no dia seguinte como se nada tivesse acontecido. Nem mesmo os votos de Feliz Natal me traziam coragem; ao contrário, faziam-me sentir-me frustrada, pela incapacidade de tornar realidade o desejo, verdadeiramente sincero, das pessoas. Mas meu coração mais uma vez me surpreendeu com uma inesperada vontade de viver bravamente, também aquele dia. Não tomei remédio para dormir. Vivi como tinha de fato que viver o dia de natal: com muita saudade e uma vontade enorme de estar com minha filha, mas confesso que não foi mais difícil do que os 255 dias anteriores. Com toda a dor que a ausência de Aninha me causa, parece que tudo foi ontem, e eu acho que será sempre assim, porque a presença dela é muito recente em minha lembrança, e é assim que eu quero que continue. Cheguei à conclusão de que não quero deixar de sentir saudade, pois esta está diretamente relacionada com a lembrança gostosa e viva que tenho de minha filha. A saudade é um sentimento muito bonito, porque só sentimos saudade daquilo ou daqueles que amamos.
Pequenos grandes milagres
Trinta e um de dezembro de 2000 foi um domingo, dia que reservo na semana para ir ao cemitério depositar flores, sempre cor-de-rosa ou coloridas, no túmulo de Aninha. Nesse dia, em especial, acordei pensando em rosas brancas, porque era a passagem de ano. Como sempre faço, fui à floricultura de costume e no caminho fui conversando com minha filha. Disse a ela que naquele dia eu havia percebido seu pai um pouco triste e desanimado e lhe pedi que ficasse pertinho dele, perto da gente, porque não sabemos viver sem ela. Pedi também que me perdoasse por estar sendo tão egoísta, mas que eu tinha certeza de que ela era uma santinha, um anjinho e que, por isso, ela seria capaz de entender a minha angústia. Fui mais longe, quando disse que eu precisava ter certeza de que ela me ouvia e que, se pudesse, me desse um sinal. Cheguei à floricultura, comprei as rosas brancas e, quando estava saindo, veio a meu encontro um funcionário da floricultura e entregou-me uma rosa, cor-de-rosa, a mais linda que eu já vi, e disse-me: - Esta rosa é pra você! Não pude conter minha emoção, agradeci e saí correndo para não desapontar o rapaz com as minhas lágrimas. O choro foi ficando cada vez mais intenso, e eu não conseguia controlar-me. Segui em direção ao cemitério com a intenção de deixar lá, também, aquela rosa. Chegando lá, desceu uma chuva muito forte que não me deu condição de sair do carro. Fiquei então esperando que a chuva passasse, e pensando porque aquele rapaz havia-me dado aquela flor. Foi quando, de repente, não mais senti vontade de deixá-la no cemitério. Estranhei muito esse meu sentimento, porque todas as flores que recebo ofereço a minha filha, mesmo que eu não as leve ao cemitério. Mas tão forte e poderosa como aquela chuva que caía veio em meu coração uma certeza muito grande: aquela rosa era o sinal que eu havia pedido, era um presente de Aninha para mim, não restava a menor dúvida. No último dia do ano, que teve tudo, e muito mais, para ser o pior da minha vida, eu recebi um presente muito especial, um pequeno grande milagre. Aquela flor me fez acreditar que milagres acontecem a todo instante, basta que estejamos com o coração aberto. Se minha filha estivesse viva, se eu não estivesse vivendo esta dura experiência, se eu não estivesse precisando de milagres para viver e me sentir feliz, certamente eu não entenderia a beleza daquela flor. Se em circunstâncias muito diferentes eu tivesse pedido a Deus um milagre e ele me mandasse uma rosa, seguramente eu não o teria percebido. Seria insano dizer que me sinto melhor depois da morte de minha filha. Isso não é verdade, pois continuo querendo, desejando ardentemente que isso tudo seja um terrível pesadelo. Continuo com medo de que amanhã eu não encontre forças para viver, mas tenho tentado, a cada dia em que me é concedida a graça de sentir-me viva, ser uma pessoa melhor. Por isso, se não posso dizer ainda que me sinto melhor, posso, com certeza, afirmar que tudo isso me ensinou muito. Cresci e hoje estou bem mais amadurecida que antes. Diante de tudo o que passei e tenho passado, muitas coisas, hoje, se tornaram para mim tão pequenas e insignificantes que me vejo – ainda que aos trancos e arrancos – vivendo a vida de maneira bem mais serena. Afinal, tenho aprendido que um dos sinais positivos de que estamos superando os desafios da vida e vencendo suas tempestades é quando temos a capacidade de voltar a sentir prazer nas coisas sem ter de fingir ou representar papéis usando máscaras. Em meio a tantas turbulências, precisamos nos lembrar de que estamos vivos e de que a nossa trajetória no tempo ainda não terminou. Se somos capazes de sair para jantar com os amigos, de contar uma piada, de dar uma boa e sonora gargalhada, de cantar e dançar, então é sinal de que estamos nos reerguendo. Afinal de contas, é preciso perceber que a vida ainda é boa e você não precisa necessariamente ser infeliz para honrar a memória de seu filho que partiu. Você não tem de se sentir culpado por se sentir feliz e por querer viver a sua vida.
Com licença, Leonardo Boff
Li recentemente o livro “A águia e a galinha”, de Leonardo Boff, em que ele faz uma brilhante e emocionante análise de nossa condição humana, baseada na estória de uma águia que virou galinha. Neste momento de minha vida em que tento tornar público, através de um livro, a minha história, confesso que foi desanimador ler tão magnífica obra e perceber que é preciso ter muitos requisitos para se escrever um livro. Eu não os tenho, é verdade, mas também não pretendo ser escritora, e foi ali mesmo, na obra de Boff, que encontrei incentivos para levar adiante meu propósito. São várias as passagens que me motivaram a partilhar com você, querido leitor, a minha experiência. Quero agora comentar algumas delas que cuidadosamente selecionei: “O saber tem sabor quando resulta de experiências, de sofrimentos, de observações dos vai e vens da vida” (p.122). Trata-se de uma grande verdade. Há uma enorme diferença entre teoria e experiência. Imaginar o quanto é difícil viver a perda de um filho e sentir na pele essa dificuldade são duas situações completamente distintas. Mesmo porque, quando imaginamos essa situação, temos a convicção de que não somos capazes de suportá-la e, quando estamos de fato vivenciando-a, vemo-nos obrigados a enfrentá-la, seja como for. Tenho certeza de que hoje, depois de sofrer a dolorosa separação de minha filha, minhas palavras adquirem um sabor de saber. Este é um saber cujo sabor, honestamente, não tenho o menor orgulho de sentir; preferiria o amargor da covardia e a ignorância de minha alma, se fosse esse o preço para ter Aninha de volta. Mas entendo que fui convidada a beber deste cálice e que não posso passar os meus dias pedindo ao Pai que o afaste de mim. Se você nunca passou por esta experiência, acredite em mim, eu sei do que estou falando. “Somente integrando céu e terra, a vida poderá caminhar com os dois pés: um firme no chão e outro levantado, como quem anda para frente, na direção certa” (p.98). O fato é que todos nós, passando por experiências como esta, ou outras semelhantes, precisamos aprender a encontrar o equilíbrio entre fé e vida, entre o que é passageiro e o que é eterno, entre espírito e matéria, enfim, entre o céu e a terra. Mesmo com a estabilidade emocional sendo colocada à prova a todo instante, tenho conseguido, enquanto avanço decidida a trilhar o caminho que me levará ao encontro da minha filha, manter um pé firme no chão, com o propósito de que em nenhum instante me desencontre daqueles que tanto amo e que, como eu, ainda estão cumprindo sua missão aqui nesta terra. Minha tarefa é continuar vivendo pelo bem de mim mesma e de minha família. Embora muitas vezes me pergunte como estaria a nossa vida se Aninha estivesse conosco agora. Seria maravilhoso senti-la, fisicamente, participando de nossa vida familiar, de nosso dia-a-dia, talvez brigando com Tavinho - agora, ele estaria mexendo em seu material escolar e seus brinquedos e ela definitivamente não ia gostar. Tenho de admitir que a realidade é outra, é dura, mas é cumprindo com amor a minha tarefa que, tenho esperança, um dia, de uma maneira muito especial, estaremos, Ucho, Tavinho, Aninha e eu juntos novamente. “Na nossa reflexão, herói/heroína é cada pessoa que assume a vida assim como se apresenta: com caos e cosmos, com ordem e desordem, com realizações e frustrações, com um buraco interior do tamanho de Deus” (p.114). Não quero parecer pretensiosa, tampouco modesta. Só me dispus a expor meus sentimentos desde que tivesse a coragem de dizer unicamente a verdade, ainda que, nesta situação, muitas vezes, ela seja subjetiva, dada a singularidade do ser humano e a peculiaridade da história de cada um. Em meu caso, tive a sabedoria de aceitar aquilo que eu não posso mudar. Não estou falando de conformismo; estou falando de aceitação serena, com dor e sofrimento, mas com fé e esperança. Quando conhecemos a fragilidade da vida, percebemos que não temos todo o tempo do mundo e, por isso, ao invés de ficarmos tentando amolecer a dureza da vida, é melhor enfrentá-la e tentar descobrir o que ela tem de bom para nos oferecer. Ser corajoso não significa não ter medo, na maioria das vezes significa sentir medo, e mesmo assim, fazer o que deve ser feito. “ O mártir, que pode ser cada um de nós, crê na lógica da semente: se não conhecer o escuro da terra, se não aceitar morrer, não viverá nem dará fruto. Quem quer conservar a vida perdê-la-á” (p.121). Ao sepultar o corpo de minha filha, ela já havia-se tornado vida plena, enquanto eu, viva em meu corpo, desci morta ao escuro da terra para, lentamente, regada pela força do mais puro amor, renascer. Não era Ana que o túmulo aprisionara. Eu ainda aqui, nesta terra, espiritualmente, é que descia à escuridão dos vales da morte, para depois retornar à vida cheia de esperança. Naquele momento, tudo parecia dizer que ela tinha morrido. Na verdade, porém, quem experimentava a morte era eu, que teria que aprender doravante a viver sem sua presença física me acariciando os dias. É no vazio que nasce o novo, é no buraco que se planta a semente. Na incapacidade de suportar a dor é que morremos e morrendo é que renascemos. Ainda que não deseje a morte, tornou-se um alívio para mim não mais temê-la. Esta talvez seja uma situação difícil de explicar, mas seguramente é um dos pontos de integração que consegui alcançar para tentar manter-me neste estreito e delicado espaço que há entre o céu e a terra. “Verificamos que a morte não é um fim derradeiro. Ela representa um momento de transformação dentro de um processo maior. A morte não nega a vida. Ela é uma invenção inteligente da própria vida para possibilitar a si mesma uma religação maior com a totalidade do universo” (p. 128). Essa deveria ser uma dedução lógica, mas não fomos educados para aceitar a morte, é por isso que disse anteriormente que não gosto dessa palavra, porque, através dos tempos, ela tem sido empregada para transmitir a idéia de que tudo acabou e que não resta esperança alguma. Ao passo que eu, somente depois de deparar-me frente a frente com ela é que pude constatar que a esperança é o único motor capaz de nos impulsionar em direção à luz no fim do túnel. A morte só representa um fim derradeiro para quem não tem esperança e amor no coração. Ao acontecer a separação de corpo e alma, a nossa relação e comunicação com aquele ser depende, exclusivamente, do sentimento em relação a ele, portanto, da fé na força do nosso amor. “Dar primazia à vida, olvidando sua mortalidade, é cair pesadamente nos braços da morte. Acolher, com serenidade, a morte porque pertence à vida, implica dar primazia à vida e viver uma inexprimível liberdade. É viver mais e melhor. É ressuscitar”. Nesta minha busca frenética para entender os mistérios da morte, acabei sendo, um dia destes, surpreendida com a história da existência dos urubus. Não poderia nunca imaginar que uma ave asquerosa pudesse, assim como a águia - uma ave tão elegante - ensinar-me uma lição rica e profunda sobre a vida e a morte. Por ser um animal que sobrevive às custas de alimentar-se de coisas putrefatas, o urubu torna-se imune a todo e qualquer tipo de doença e, não morrendo por acidente, viverá aproximadamente 450 anos, quando ele se suicida, por não suportar a angústia de viver tanto. Fiquei então pensando que, se eles não se suicidassem, como estaria o mundo infestado de urubus? E se nós, seres humanos, não morrêssemos, mesmo assim seria possível continuar nascendo pessoas? Por que aceitamos o nascimento e não aceitamos a morte? Onde está a racionalidade nesta questão? Nós ou os urubus é que são irracionais? Parece de mau gosto uma metáfora como esta, mas a história não é uma parábola, trata-se de uma verdade científica. E se essas aves existem, é bom que saibamos que, por detrás de sua função de equilibrar o ecossistema, enquanto experimentam uma inexprimível liberdade, há uma grande lição a aprender. Foi assim que eu recebi essa mensagem, porque a mim me convém enxergar em tudo a Providência Divina. “Não há quem resista à força do amor incondicional. Por causa dele tudo é resgatável. Ele rompe sepulturas e transforma a morte em ressurreição” (p. 132) Um dos grandes frutos que eu colhi ao ter que abrir mão de minha filha foi o aprendizado radical sobre o amor. A lógica do mundo nos ensina que eu ganho mais na medida em que mais retenho. Agora sei que a lógica do amor é o oposto, ou seja, eu ganho mais na medida em que mais posso doar. Hoje possuo mais a minha filha do que antes, quando a tinha em meus braços. Ao entregá-la, entreguei, também, meu coração. É por isso que eu tenho certeza que de Ana está viva. Todos nós somos co-participantes da vida dos outros e somos também responsáveis pela vida uns dos outros. Já dizia Martin Luther King: “Ou nos tornamos irmãos ou ficaremos todos loucos”. Em outras palavras, escreve Boff: “Temos uma indigência fundamental que nos faz esmoleres uns dos outros. De outro lado, somos portadores de uma riqueza inesgotável que nos faz doadores uns dos outros. Temos algo a dar e a contribuir que somente nós podemos oferecer ao crescimento do todo” (p. 134). No capítulo “A senha para o reencontro,” eu conto como Aninha – sem o conhecimento de causa de Luther King, e sem a sabedoria e a sofisticação das palavras de Boff, mas com a pureza de alma que só um anjo pode ter - me disse a mesma coisa: “Mamãe, não se esqueça de que somos todos irmãos”. Estou convencida de que nesta terra só há sentido para a nossa existência se ela mesma for fundada num amor verdadeiro. Muito obrigada, Leonardo Boff!
Conclusão
Querido leitor, encerro aqui a partilha de minha experiência. Tive de selecionar alguns episódios que mais marcaram esta minha trajetória. Tive inclusive de me sintonizar aos pequenos sinais de meu cotidiano para sentir o momento preciso em que eu devia parar de escrever. Porque este texto trata de uma história que não tem fim, o aprendizado é diário. Tentei transmitir, em muitos momentos, com palavras de grandes escritores o que as minhas próprias palavras não são capazes de dizer, mas que minha experiência atesta. Minha grande esperança é que este pequeno livro possa ajudá-lo, ou a qualquer outra pessoa que esteja passando por momentos difíceis, a encontrar aqui uma luz, uma força, para prosseguir, apesar dos percalços do caminho. Hoje sei, melhor do que antes, o quanto se pode crescer em meio ao sofrimento. Nada acontece ao acaso na vida da gente e se coisas ruins ocorrem em nossa vida é para que possamos tirar delas um bem maior. Quero testemunhar aqui, como eu escrevi para minha mãe, que eu descobri Deus onde ele realmente está. Infelizmente eu não posso dizer onde Ele se apresenta para você, caro leitor, mas seguramente posso-lhe dizer: - Ele existe, e é maravilhoso, é esperança, é amor, é tudo de bom que existe dentro de você. Deus é a sua alma, quando você realmente quer encontrar o caminho para o céu. Termino aqui minha narrativa, citando novamente um texto de Rubem Alves que diz: “As velas choram enquanto iluminam. Suas lágrimas nascidas no fogo transbordam e escorrem pelo seu corpo. Choram por saber que para brilhar é preciso morrer”. Sei que um dia, do outro lado desta vida, eu terei de novo minha filha comigo e que minha esperança não terá sido em vão.

CONTRACAPA
Só me dispus a expor meus sentimentos desde que tivesse a coragem de
dizer unicamente a verdade, ainda que, nesta situação, muitas vezes, ela seja subjetiva, dada a sigularidade do ser humano e a peculiaridade da história de cada um.
Ao sepultar o corpo de minha filha, ela já havia se tornado vida plena, enquanto eu, viva em meu corpo, desci morta ao escuro da terra para, lentamente, regada pela força do mais puro amor, renascer.
Não trocaria a honra e a felicidade de ser mãe de Ana pela covardia de não enfrentar com o coração despedaçado o sofrimento que assola minha alma.
A autora.
Kênia,
Aninha finalmente me deu forças para ler o seu livro.
É a realidade dura, triste, insuportável, mas também é esperança e poesia - amarga e dolorosa, mas poesia. Somente uma mulher forte, capaz de rasgar o coração, poderia escrevê-lo com tanta sinceridade.
Tenho certeza de que Aninha está muito orgulhosa de ter uma mãe como você.
Imagino a cena: minha netinha cutucando os anjinhos, seus amigos, apontando cá pra baixo:
"Estão vendo aquela mulher linda, corajosa, ali? É minha mãe!"
E eles, encantados, batem suas asinhas aplaudindo-a e derramam todas as graças sobre você.
Parabéns, minha filha. Você é um exemplo para nós.
Obrigada.
Um beijo e todo o amor de Jacy.
UNIMONTES

5 comentários:

Kátia Sena disse...

Nem acredito que encontrei esse blog. Me chamo Kátia,tenho 29 anos e em 2004 na biblioteca do meu trabalho encontrei o livro ENTRE O CÉU E A TERRA, li,chorei e me apaixonei,em 2005 me casei e vim morar em Portugal,um dia liguei para minha mãe e pedi que procurasse o livro pra mim,mas infelizmente ela nunca encontrou.Mas como sou insistente mais uma vez hoje procurei na internet e hoje com muita felicidade encontrei o seu blog,não sou mãe,mas é uma história tão linda que toca até mesmo quem não seja.Gostaria de ter um contato com vc,não sei pq mas senti uma ligação desde que li seu livro, apesar de na época só ter 18 anos fiquei tocada pra sempre. E tenho em comum com vc de a minha mãe tb ser de montes claros.Bom não sei o que vc vai achar do meu comentário,mas saiba que amei e vou amar pra sempre a sua história!!!! Bjs.

Fabiana Gomes disse...

Emocionada com seu relato, eu também perdi uma filha, Letícia, partiu aos 6 meses de idade deixando-me uma imensa saudade e um amor absolutamente maior. Como você p eu também escrevi um livro, descobri através da escrita um imenso consolo ao desabafar, escrevo um blog e através dele conquistei grandes amizades de corações partido como o meu e o seu, ainda não sei como publicar, pode me orientar? Obrigada!

Unknown disse...

Oi Fabiana, Deaculpe mas só agora vi sua msg. Espero q já tenha encontrado respostas p sua dúvida. No meu caso eu procurei a editora da universidade da minha cidade. Eles fizeram um ótimo trabalho, mas é preciso encontrar uma editora Q tbém trabalhe com a distribuição

Samaralise disse...

Eu também não acredito que achei esse blog... Li esse livro há muitos anos creio que em 2004, lembro que eu tinha a mesma idade que a Aninha teria e imaginei a dor que vocês sentiram... As vezes me sentia como se eu a conhecesse. Fiz uma conexão enorme de empatia com a sua história. Pra sempre vou guardar no coração...

Unknown disse...

Eu já li este livro; não possuo;bacana demais encontrar ele por aqui ! Esse relato deve ser lido por todas as mães! A vida é isso, uma surpresa diária e vamos tentando encontrar Forças para superar as dores inevitáveis...